Golpe militar - UNISANTA Online [PDF]

May 24, 2014 - acontecimentos críticos da região, tais como a interdição do Sindica- to dos Operários Portuários, a gre-

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Forget safety. Live where you fear to live. Destroy your reputation. Be notorious. Rumi

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Don’t grieve. Anything you lose comes round in another form. Rumi

militar
It always seems impossible until it is done. Nelson Mandela

contra o golpe
Make yourself a priority once in a while. It's not selfish. It's necessary. Anonymous

academia militar
This being human is a guest house. Every morning is a new arrival. A joy, a depression, a meanness,

Sanidad Militar
We can't help everyone, but everyone can help someone. Ronald Reagan

Sanidad Militar
I want to sing like the birds sing, not worrying about who hears or what they think. Rumi

Sanidad Militar
Nothing in nature is unbeautiful. Alfred, Lord Tennyson

Sanidad Militar
Knock, And He'll open the door. Vanish, And He'll make you shine like the sun. Fall, And He'll raise

academia militar
Happiness doesn't result from what we get, but from what we give. Ben Carson

Idea Transcript


JORNAL-LABORATÓRIO DO QUARTO ANO DE JORNALISMO DA FACULDADE DE ARTES E COMUNICAÇÃO DA UNISANTA ANO XIX - N° 146 - MARÇO/2014 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA - SANTOS (SP)

Reprodução/rafael herrera / RAFE AGUIAR

Quepes no Salão Nobre da Prefeitura: militares chegavam ao poder

reprodução/ evandro teixeira / RAFE AGUIAR

Enquanto isso, nas praças públicas, o povo lutava contra o arbítrio e a falta de liberdade

Golpe militar:

50 anos de uma tragédia Esta edição recupera também os 30 anos da volta da autonomia política para a cidade de Santos REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

Festa na Praça Mauá marcou a reconquista da autonomia política, que foi restabelecida de direito quando da posse de Oswaldo Justo em 1984

As consequências do golpe militar de 1964 em Santos e região estão nas páginas desta edição do Primeira Impressão. As reportagens mostram como a Cidade foi brutalmente atingida pelo golpe, com a perda de sua autonomia. No ensaio fotográfico, o leitor encontrará imagem do navio-presídio Raul Soares que ficou ancorado no estuário, entre outras fotos marcantes daquele período.

Editorial Reflexões sobre a ditadura militar Lia Heck Uma releitura do golpe que há 50 anos foi um marco na história do país é o que apresenta esta edição. Infelizmente, um marco trágico e sangrento. O golpe militar de 1964 deu início a um período sombrio no Brasil, e nenhuma outra cidade sofreu tanto quanto Santos. Repressão, prisões, mortes. Foi no maior porto da América Latina que o navio ‘Raul Soares’ serviu de prisão para os opositores do

regime. Após a intervenção federal, nossa cidade só voltou a ter o direito de escolher seu prefeito após 20 anos. Aqui estão registradas histórias de quem participou, sofreu e de alguns dos sobreviventes desse período. Conhecer o que aconteceu nessa época é de extrema importância para entender os rumos da sociedade brasileira e a política atual. Uma sociedade que hoje vai às ruas por outros motivos, mas que também demonstra vontade de mudança.

PRATA DA CASA RAFE AGUIAR

Rafael Oliva, formado em Comunicação, é um profissional multifacetado

Profissional de várias vertentes Rafe Aguiar

Formado em Jornalismo na turma de 2001 na Universidade Santa Cecília (UNISANTA), a prata da casa do mês, Rafael Oliva, é um profissional focado e antenado no universo da comunicação. Atual assessor do gabinete do prefeito de Santos também é formado em Publicidade e Propaganda, pela Universidade de Ribeirão Preto, e MBA em Marketing, pela Fundação Getúlio Vargas. A vida profissional do jornalista começou no Boqnews, onde passou os sete primeiros anos de sua carreira. “Fui repórter e colunista político, mas fiz praticamente tudo lá”, comenta sobre o seu aprendizado. Foi no jornal que Oliva teve o primeiro contato com a assessoria na campanha de um candidato à Assembleia Legislativa. “Desde a faculdade o meu foco foi a área política. As matérias no Primeira Impressão eram sobre política”. Rafael comenta que já na sala de aula era perceptível a vocação de cada estudante, e citou como exemplo os ex-colegas de classe Douglas Gonçalves e Odinei Ribeiro, que hoje atuam na política e esportes, respectivamente. “Eu lembro de uma matéria que fiz no PI que foi com o Luiz Carlos Luca Pedro, ex-prefeito de São Vicente, que depois acabou saindo da atividade política, e montou uma papelaria na cidade”, relembra. Depois que saiu do Boqnews, Oliva ficou na assessoria de imprensa da Sabesp, coordenando a comunicação da empresa na Baixada Santista. O assessor deixou seu cargo em 2012, quando foi

chamado por um amigo para entrar na campanha de Paulo Alexandre Barbosa, atual prefeito de Santos. O trabalho é puxado. Começa às 7 horas, com a leitura dos principais jornais. Enquanto estava sendo entrevistado, ele ficava atento também na entrevista que o prefeito concedia à rádio CBN. “Eu acho que o trabalho de assessor é exatamente a mesma coisa que um repórter da mídia tradicional”, explica. Segundo Oliva, o trabalho de preparar o material de apoio para as entrevistas de seus assessorados requer o mesmo cuidado que do repórter ao preparar uma matéria. “Eu preciso conversar com os responsáveis de cada assunto para preparar o suporte ao prefeito”, explica. Ele afirma que os questionamentos são os mesmos. “A averiguação é minuciosa. Qualquer erro que sai publicado no jornal, é erro do jornalista. No caso do assessor, o erro sai na boca do assessorado”. Oliva conheceu sua esposa, Ana Paula, que era sua veterana na época de faculdade. O casal se conheceu durante a cobertura dos Jogos do Santa. Rafaelzinho, o primeiro filho do casal, nasceu em fevereiro deste ano, dando mais uma função ao pai multifuncional. Com 13 anos de carreira, Oliva colheu muitos frutos positivos com a sua primeira graduação, feita na UNISANTA. “Me deu oportunidade no mercado de uma forma geral. Tive uma noção de todas áreas do jornalismo”, explica. “Saí do Santa capaz de fazer um jornal inteiro: diagramação, texto, edição, fotografia e todo o processo”. RENAN FIUZA

Erramos: Por uma falha técnica, o jornal de fevereiro não publicou a foto do presidente da CET, Antônio Carlos Silva Gonçalves.

Chaim mostra a realidade da Síria com seu trabalho

Mortes, fome e vivência com refugiados são temas que as lentes capturaram RAFE AGUIAR RAFE AGUIAR

Carolina Kobayashi O fotógrafo Gabriel Chaim, através de vídeos e fotografias, mostra a situação em que se encontra a Síria. No ano passado, ficou por três meses na cidade de Aleppo, onde presenciou vários ataques de caças e mísseis, filmando os destroços e o que restou de vilas e apartamentos. O número de mortes chegou a 110 mil mortes, a maioria crianças. O fotógrafo se recorda que, certa vez, um missil atingiu um bairro e famílias inteiras morreram. Numa delas havia sete filhos, sendo que um deles tinha apenas dois anos. O fotógrafo encontrou o bebê entre os escombros. Mais tarde ele foi encaminhado para adoção e conseguiu um lar. Feito difícil, uma vez que muitas pessoas passam fome e não possuem condições de adotar alguma criança. A fome e a miséria percorrem as ruas de Aleppo. Em suas fotografias, Chaim mostra o que as famílias sobreviventes aos ataques estão enfrentando: “Eles comem cachorro, gato e agora estão comendo até grama, pois não têm o que comer”, explica. Os principais alvos dos ataques são as escolas, ONGs e hospitais. “Os ataques ocorrem de dez a 15 vezes todos os dias”, conta o fotógrafo, que se alojava em uma ONG onde havia uma escola. Algumas escolas são subterrâneas para maior segurança das crianças. Os professores recebem comida como forma de pagamento. Chaim também mostra em seu trabalho os atiradores de elite, os chamados snipers. Muitos deles ensinaram ao fotógrafo, técnicas para escapar dos tiros. Muitos sírios tentam fugir de tanta violência. Com a revolução, só quem tem grande poder aquisitivo está conseguindo tirar ou renovar o passaporte. Uma das soluções que alguns encontraram foi procurar os campos de refugiados. O maior fica

Chaim durante palestra para os alunos da Universidade Santa Cecília

na Jordânia. Outros viram imigrantes ilegais na Turquia, motivo quel levou Chaim conhecer a Síria: “Eles estão presos em sua própria terra”. Alguns sírios tentam buscar refúgio em embaixadas. É o caso de Miguel, nome adotado por ele quando chegou ao Brasil, que acabou se tornando amigo de Chaim. Miguel tentou pedir ajuda em 14 embaixadas, mas só foi aceito no Brasil. “Na embaixada da Austrália a atendente perguntou de que país eu era. Quando eu disse que era sírio, ela me respondeu da porta mesmo, que era para eu cair fora”, conta o refugiado. Formado em Engenharia de Telecomunicações, ele ficou dois anos e sete meses na Malásia, mas o expulsaram. Atualmente, ele está com o visto de turista (que tem validade de três meses)

e não recebe nenhum auxílio do governo brasileiro. Mora na região do Brás, em São Paulo, local onde mais refugiados da Síria se encontram. A maioria deles trabalha como mão de obra barata para os comerciantes do Brás. Miguel contou que a casa em que um de seus tios morava com quatro filhos foi bombardeada por um avião. Todos morreram. “Sinto saudade das memórias que eu tinha de infância, da fazenda, que me foram roubadas”, comentou Miguel. Seus pais continuam em Damasco, cidade onde morava. Eles não vêm para o Brasil, pois seu pai já tem idade avançada e ainda tem que cuidar da avó de Miguel. Pediram para ele sair da Síria porque acreditam que Miguel é o único futuro para a família.

Análise do professor Todo repórter de guerra tem muito para contar. E o repórter fotográfico Gabriel Chaim não foge à regra. Transformar emoção num texto objetivo e conciso é sempre um desafio para quem entrevista ou cobre uma palestra dada por um personagem como esse, uma espécie de sobrevivente. Carolina Kobayashi e Thamirys Barbosa souberam como enfrentar esse desafio e se saíram bem como mostram os textos escolhidos para esta página. Seus textos captam a emoção das palavras, sem perder o compromisso com a objetividade.(Adelto Gonçalves)

Fotógrafo promove visibilidade aos “filhos da guerra” Thamirys Barbosa

Três anos de conflito, mais de 300 mil mortes, batalhas sangrentas e liberdade corrompida. Este é o atual cenário da Síria, Oriente Médio. Com cerca de 185 mil km² de área (equivalente a 3/4 do Estado de São Paulo), o país vem enfrentando conflitos violentos e ataques frequentes a escolas e hospitais. Para retratar a dura realidade dos sírios, o fotógrafo brasileiro Gabriel Chaim passou quase três anos percorrendo campos de refugiados para viver suas dificuldades e compartilhar do sofrimento de quem está preso em sua própria pátria. Para contar sobre a experiência em guerra, o fotógrafo ministrou palestra na Universidade Santa Cecília. O fotógrafo mostrou vídeos do rastro de destruição deixado pelo regime de Bashar al- Assad.. As imagens mostravam o quanto a vida é frágil durante a guerra. Eram imagens fortes de lares bombardeados, opressão, fome e miséria. De forma didática, Chaim explicou aos universitários sobre o que vem passando o povo da

Síria. Chain trouxe consigo o refugiado “Miguel” que contou aos estudantes suas experiências de vida. “Somos livres em espaço demarcado. Quando os extremistas chegaram querendo colocar a lei islâmica acima de tudo estragaram qualquer paz futura”, desabafa. Mesmo de volta ao Brasil, Chaim continua lutando pelos “filhos da guerra” como ele mesmo intitulou. “Tenho uma campanha no Facebook que se chama “S.O.S Crianças na Síria”. Quero criar uma rede de solidariedade e ajudar crianças vítimas da guerra”, conta. O fotógrafo também relatou que muitos colegas passaram rapidamente pelo local com o único objetivo de fazer belas fotos de tristeza. Ele chegou a ser muito criticado e questionado pelo tempo de sua estadia. “Continuo fotografando porque se não for eu, quem vai ser?”. Esta foi a justificativa para suas viagens a lugares de extremo risco. Gabriel é casado e tem um filho de cinco anos e, segundo ele, esse foi o principal motivo de sua sensibilidade e preocupação quanto à segurança. Existem moradias

temporárias para profissionais da comunicação (chamadas “fixer’s”), mas os guias – que também são jornalistas- sempre deixam claro que a segurança da imprensa nunca está garantida. “Terminei minha jornada quando um colega correspondente da rede Al Jazeera saiu para cortar o cabelo e não voltou mais. Minutos depois chegou a notícia de que ele havia morrido com cinco tiros no rosto. Foi meu último dia na Síria”. O ditador Bashar al-Assad está no poder desde 2000, em continuidade à ditadura que começou em 1971, com seu pai Hafez al- Assad. Seu exército conta com 295 mil homens e 314 mil reservistas. A Primavera Árabe de 2011 no Egito e na Tunísia inspirou os sírios a tomarem as ruas em março de 2011, em protestos contra o regime de Bashar al-Assad. Os sírios pediam uma reforma democrática, porém os protestos não foram bem aceitos. As tropas do regime de Bashar al-Assad começaram a abrir fogo contra civis. O governo respondeu com medidas extremas, e assim, manifestantes foram sequestrados, torturados e mortos.

EXPEDIENTE - Jornal-Laboratório do Curso de Jornalismo da Faculdade de Artes e Comunicação da UNISANTA - Diretor da FaAC: Prof. Humberto Iafullo Challoub Coordenador de Jornalismo: Prof. Dr. Robson Bastos – Responsáveis Prof. Helder Marques, Prof. Dr. Adelto Gonçalves, Prof. Dr. Fernando De Maria e Prof. Francisco La Scala Júnior. Design Gráfico e diagramação: Prof. Fernando Cláudio Peel - Fotografia: Prof. Ms. Luiz Nascimento – Redação, fotos, edição e diagramação: alunos do 4º ano de jornalismo – Editor de foto: Rafe Aguiar Primeira página: Rafe Aguiar - Coordenador de Publicidade e Propaganda: Prof. Alex Fernandes - As matérias e artigos contidos nesse jornal são de responsabilidade de seus autores. Não representam, portanto, a opinião da instituição mantenedora – UNISANTA – E SANTA CECÍLIA – Rua Oswaldo Cruz, nº 266, Boqueirão, Santos (SP). Telefone: (13) 32027100, Ramal 191 – CEP 11045-101 – E-mail: [email protected]

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Edição e diagramação: Jéssica Santos PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

“Japona não é toga” Segundo o ex-deputado Gastone Righi, a frase é do presidente do STF ao conceder o habeas corpus que libertou presos políticos em Santos Reprodução/ Rafe Aguiar

Nicole Siqueira O advogado Gastone Righi era deputado federal quando foi implantada a ditadura militar no Brasil. Foi cassado e ficou 15 anos sem direitos políticos, de 1968 a 1982. Foi o profissional que conseguiu habeas corpus para libertar presos políticos, numa época em que os militares elaboravam e agiam adotando leis de exceção. Ele conta que Santos foi a cidade mais atingida pelo golpe e teve um grande número de presos. Eram tantos que os militares ancoraram o navio Raul Soares, no estuário e ele serviu de prisão para mais de 1.200 pessoas. Os prisioneiros sofreram com as altas temperaturas vindas das caldeiras do navio. “Prenderam todos os secretários e o prefeito da cidade no Raul Soares, menos o Chico Prado (advogado e professor Francisco Prado de Oliveira Ribeiro), que era secretário de Justiça e meu sócio de escritório. O Chico fez um apelo para que eu ajudasse os presos. De recurso em recurso, acabei chegando ao Supremo Tribunal Federal e o presidente da corte concedeu o habeas corpus”, conta Gastone. Ao concedê-lo, o ministro Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa disse uma frase que ficou famosa: “japona não é toga”. Naquela época era a Justiça Militar que analisava todos os processos, já que, pelo Ato Institucional nº 2, os Apresentação de sindicalistas presos no navio Raul Soares: todos levavam seus pertences na certeza de que teriam a liberdade naquele dia juízes não podiam decidir e nem podiam tomar conhecimento das leis Reprodução/ Rafe Aguiar feitas pelos militares. Gastone ficou preso em Brasília, pois não quis que sua prisão acontecesse em Santos. Enquanto isso, sua mulher grávida de sete meses e com três filhos, continuou na cidade. O nervosismo por não saber onde estava o marido fez com que perdesse o bebê. Para as pessoas que acreditam

‘ ‘

“Santos foi a cidade mais atingida pelo golpe e teve um grande número de presos. Eram tantos que os militares ancoraram o navio Raul Soares no estuário e ele serviu de prisão para mais de 1.200 pessoas. ”” Gastone Righi, advogado O ex-deputado federal Gastone Righi foi um dos advogados que defenderam presos políticos durante o golpe de 1964

que no período militar não havia corrupção, Gastone afirma que havia mais do que atualmente, mas não vinham a público, por causa da censura à imprensa. “A corrupção não se combate com a ditadura. Combate-se com o aprimoramento das instituições democráticas”, afirma o advogado. Para ele, o melhor caminho para se conseguir uma nação forte, unida, democrática e grande é por meio do parlamentarismo. “O presidencialismo é uma monarquia

disfarçada, porque elegemos o presidente e é ele que decide tudo. O povo brasileiro tem ideia muito errônea do Parlamento, dado que o Legislativo sempre existiu como tapete ou como piso para o Executivo”. Parlamentarismo Ele acredita que só o parlamentarismo pode conseguir as reformas sociais, as chamadas reformas de base, que eram o principal objetivo do governo do

presidente João Goulart (Jango) antes do golpe e até hoje não foram feitas. “Se a democracia quer ouvir o povo tem que ser através de uma eleição direta, ou seja, o povo deve eleger delegados para que falem por eles, porque diretamente não é possível falar dada a quantidade de pessoas na sociedade, obviamente. Esses delegados seriam os parlamentares, que não seriam iguais aos que temos agora, porque hoje temos um monte de profissionais da política que só defendem seus interesses”,

acrescenta o ex-deputado. Segundo Gastone, a Constituição brasileira era até um determinado ponto parlamentarista, mas quando chegou na hora da fixação do mandato presidencial todos optaram por cinco anos enquanto que o do presidente José Sarney era de seis anos. Ele aceitou abrir mão do último ano de governo. “Até aí tudo caminhava normalmente, mas nesse instante alguns políticos, capitaneados pela esquerda, tentaram dar um golpe

no Sarney. Depois desse momento, a esquerda votou e decidiu que o parlamentarismo fosse posto em prática a partir da Constituinte. E o Brasil perdeu uma grande oportunidade”, revela o ex-deputado que foi constituinte. Para ele, a democracia nunca acontece em sua plenitude; ela deve ser cuidada dia a dia, como uma muda ou como a própria saúde do cidadão, até que todos, sem exclusão, possam ter direitos iguais, ou seja, viver de fato em sociedade.

Edição e diagramação: Jéssica Santos PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

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Golpe tentou calar os democratas Na lembrança dos 50 anos do início da ditadura militar ainda há muito o que aprender para que a história não se repita REPRODUÇÃO

Rafaella Martinez Vicentini Era 1º de abril de 1964, quando os jornais de todo o País estampavam na capa o anúncio de novos rumos políticos. O general do II Regimento do Exército, Amaury Kruel, convocava as tropas para um golpe de estado, a fim de “neutralizar a ação comunista que se infiltrou em alguns órgãos governamentais”. No mesmo dia, o governador Ademar de Barros dirigiu proclamação ao povo paulista e brasileiro anunciando o golpe, como uma tentativa de “restabelecer a ordem pública e segurança nacional”, já se referindo a João Goulart como ex-presidente. Eram as primeiras horas dos 20 anos, 11 meses e 15 dias em que a nação viveria sob o regime militar, responsável por inúmeras cassações, torturas e mortes que nunca foram esclarecidas. Na ocasião, não havia uma, mas várias conspirações explodindo no Brasil para a deposição do presidente. Sem maioria no Congresso, Goulart sofria ataques por todos os lados. Nas cidades, os sindicalistas haviam perdido as reformas de base prometidas e as elites sentiam-se ameaçadas. A zona rural se organizava pela reforma agrária e os estudantes queriam uma nova estrutura educacional. Quase todos os setores se uniram pela campanha antigovernamental e anticomunista. No dia 19 de março, a Igreja Católica organizou, com o aval da mídia e de alguns partidos políticos, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em uma declaração pública de apoio ao golpe de estado. Acionada pelo general Olympio Mourão Filho, os militares assumiram o risco de iniciar um ato que poderia resultar em uma sangrenta guerra civil. No dia do golpe, tropas aliadas do governo mudaram de lado e não foi necessário troca de tiros. Goulart saiu do palácio e acabou por se exilar no Uruguai. O presidente se retirava e o País estava sob o controle de tropas militares. Reflexos na Baixada Santista Era um dia de outono com tempo instável, chuva fraca e temperatura amena. Naquele fatídico 1º de abril, o jornal A Tribuna trazia em sua capa a iminência de um Golpe de Estado, juntamente com declarações do ministro Abelardo Jurema de que “a situação estava sob controle interno do governo” e do general Genaro Bomtempo, secretário do ministro de Guerra, que afirmava: “a situação militar no País era calma e o que havia era apenas uma indústria de boatos organizada, espalhando notícias absurdas”. Na mesma manhã, a sede do jornal e da rádio Jornal do Brasil na Guanabara (RJ) fora ocupada por fuzileiros navais, ficando fora do ar por 40 minutos e voltando a transmitir apenas músicas. O jornal A Tribuna levantava em sua primeira página as suspeitas da censura federal às emissoras de rádio e TV no primeiro dia do golpe. Vários setores importantes para a economia da Baixada Santista foram paralisados. Em Cubatão, os operários da Cosipa (atual Usiminas) e da Refinaria Presidente Bernardes cruzaram os braços. Em Santos, os bondes deixaram de circular e o Porto amanheceu sem os estivadores. No dia 3 de abril, o mesmo jornal A Tribuna que havia destacado a suspeita de censura federal às mídias divulgou uma matéria intitulada “População da Baixada acompanha acontecimentos com tranquilidade”. Ao contrário da chamada, o texto,

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sem assinatura, relatava os últimos acontecimentos críticos da região, tais como a interdição do Sindicato dos Operários Portuários, a greve nos bondes, a intervenção na Refinaria e a ocupação da Cosipa. Por outro lado, continuamente valorizava a postura dos militares, frisando que as tropas do Exército não haviam exercido qualquer ação, finalizando o texto com a frase: “A situação no dia de ontem foi de mais perfeita calma, como já dissemos linhas acima”. O sindicato dos Empregados na Administração do Serviço Portuário de Santos sofreu intervenção. Os operários da refinaria mantiveram resistência por 21 dias, sabotando inclusive os tanques de combustível, deixando a cidade sob a iminência de uma explosão. Na Cosipa, muitos operários fizeram uma parede humana contra os interventores. O Exército e a polícia ocuparam locais e nos dias subsequentes ao golpe se espalharam pelos jornais comunicados de empresas exigindo o retorno dos operários às atividades sob risco de, por exemplo, serem “substituídos por brasileiros que compreendem a gravidade do momento e querem defender a Pátria e suas próprias famílias”. A república do sindicalismo Santos possuía movimentos sindicais fortes e combativos, sendo conhecida como a Cidade Vermelha. Quando surgiram os boatos de golpe, os líderes sindicais da cidade se reuniram para pensar as ações a serem executadas. Todos ainda aguardavam uma reação que nunca aconteceu por parte do governo. Em pouco tempo, passaram a ser perseguidos por uma ditadura na qual a agitação e subversão eram classificados como crimes que dispensavam ordens judiciais, processos, inquéritos ou interrogatórios. Os militares consideravam Santos uma cidade dominada por comunistas. Por conta disso, no dia 24 de abril de 1964 encalhou propositalmente em um banco de areia próximo à Ilha Barnabé o navio Raul Soares, que aprisionou centenas de sindicalistas e políticos da Baixada Santista até o dia de sua desativação, em 23 de outubro de 1964. São Vicente foi a primeira cidade da Baixada Santista a apoiar

Edição e diagramação: Jéssica Santos PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

A Tribuna estampava em suas páginas a falsa sensação de normalidade, bem como chamados de retorno ao trabalho

o novo regime. Santos não se posicionou imediatamente, aumentando a suspeita de um interventor na cidade, fato que se tornou concreto com a perda dos direitos políticos do então prefeito José Gomes em 14 de junho e sua substituição pelo capitão Fernando Hortala Riedel. Com o golpe, o movimento sindical foi gravemente afetado e as atividades políticas da cidade perderam o vigor e a ousadia, ameaçada por punições e denúncias. As poucas vozes de oposição que se levantavam eram abafadas por constantes invasões em residências e escritórios, constrangimentos, espancamentos, fugas, torturas e mortes.

Os anos de chumbo Em 1965, um nome se destaca em meio à ditadura: Esmeraldo Tarquínio. Tendo sua candidatura à Prefeitura de Santos inicialmente impugnada e confirmada há menos de um mês das eleições, Esmeraldo recebeu 34.496 votos. Embora tenha perdido as eleições, alcançou um número alto para quem às vésperas da votação era considerado praticamente um anticandidato. O slogan de sua campanha “A luta continua” ocupou importante espaço na retomada do espírito oposicionista na cidade. No mesmo ano, o Governo Federal baixou o Ato Institucional nº2 que extinguiu o Código Eleitoral

e os 13 partidos existentes, criando apenas dois blocos partidários: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), formado por governistas, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que reuniu as oposições consentidas pelo governo. Em 1968, a morte de um estudante no Rio de Janeiro multiplicou a frequência e intensidade das manifestações políticas. Aproximadamente 200 estudantes foram detidos e a atenção do governo se voltou para as atividades culturais, dando início a um período de intensa repressão. Em novembro de 1968, foi instaurado o Conselho Superior de Censura. Muitas músicas, obras teatrais e manifestações culturais foram proibidas e diversos artistas, assim como políticos, precisaram se exilar no exterior. Santos iniciou um ato de resistência por meio das urnas. Esmeraldo Tarquínio, negro e opositor, foi eleito com 45.210 votos. No total, o MDB conseguiu quase o dobro de votos da Arena. A cidade refletia nas urnas o descontentamento com o regime militar e foi alto o preço a pagar por ter honrado sua história de luta. Em dezembro de 68, o presidente Costa e Silva assinou o Ato Institucional nº5 (AI-5) que garantia o poder de intervir nos estados e nos municípios. Esmeraldo foi cassado e Oswaldo Justo, seu vice, renunciou. Santos fora novamente submetida à intervenção federal, dentro do que determinava o Ato Institucional nº7 (AI-7). Em setembro de 1969, de acordo com o Decreto Lei 865, e graças à importância estratégica e econômica do Porto, a cidade foi considerada área de segurança nacional, perdendo sua autonomia política e sofrendo o segundo grande golpe da ditadura. Foram necessários 15 anos de lutas, muitas delas encabeçadas por Esmeraldo Tarquínio (que faleceu pouco tempo antes de ver a cidade e o País enfim redemocratizados) para que, em 3 de junho de 1984, Santos elegesse Oswaldo Justo para prefeito, recuperando sua autonomia política. O fim do regime militar Em 1979, o general João Batista Figueiredo assumiu, prometendo o retorno da democracia. Entre seus primeiros atos, assinou anistia aos políticos cassados pelos atos institucionais e permitiu o retorno ao Brasil dos exilados pelo regime militar. Também extinguiu o bipartidarismo. Em 1984, milhões de brasileiros participaram do movimento das Diretas Já, favorável à aprovação da Emenda Dante de Oliveira, que garantiria eleições diretas para presidente naquele ano. A emenda não foi aprovada, mas em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral escolheu Tancredo Neves, integrante da Aliança Democrática - grupo de oposição formado pelo PMDB e pela Frente Liberal, como novo presidente da República. Tancredo faleceu antes de assumir a presidência, que ficou a cargo do seu vice, José Sarney. O dia da posse, 15 de março de 1985, marcou o fim do regime militar. Em 1988, foi aprovada uma nova Constituição para o Brasil, que estabeleceu princípios democráticos no País. Mesmo com uma nova Constituição, as heranças do regime militar permanecem, seja na memória dos que sofreram na pele seus reflexos ou na geração que se seguiu, que busca por respostas aos atos que afligiram seus parentes e interferiram drasticamente nos rumos do País.

Um sobrevivente do golpe O ex-deputado Nelson Fabiano Sobrinho vivenciou de perto a violência da ditadura militar CAROLINA HUERTE

Carolina Huerte Quem conversa com Nelson Fabiano Sobrinho não imagina tudo o que ele vivenciou nestes 71 anos de vida. Advogado por formação, calmo e muito comunicativo, Fabiano vivenciou de perto a violência, a censura e o caos que o Brasil se tornou a partir de 31 de março de 1964, quando houve o golpe militar que, em 2014, completa 50 anos. Fabiano sempre foi um homem que corria atrás de seus ideais. Formou-se em Direito na Universidade Católica de Santos onde, em 1963, foi presidente do Centro Acadêmico, terminando seu mandato no fatídico ano em que a vida dos brasileiros iria mudar, com apenas 21 anos. O golpe tinha como objetivo colocar militares no poder derrubando o então presidente João Goulart, conhecido como Jango. “Naquela época, era comum os jovens participarem ativamente da política, era da nossa formação. Assim, não havia um jovem que não tivesse uma opinião sobre a situação que vivíamos”, comenta Fabiano. “Nunca vou me esquecer como a censura foi cruel com os grandes jornais, como a Folha de S.Paulo, e O Estado de S. Paulo, com peças de teatro, músicas. O Brasil era considerado terra de ninguém, era um completo caos”, destaca. Quando os militares assumiram o poder, tendo como presidente o marechal Castelo Branco, Fabiano lembra-se da censura imposta no País durante os 21 anos que ele julga como os mais terríveis da história do Brasil. “Nas ruas, era possível ver homens e mulheres sendo presos e espancados. Nas celas, as mulheres eram até abusadas sexualmente. Sem levar em consideração o decreto 477, que era um absurdo”, diz. O decreto 477, de 26 de fevereiro de 1969,

contrário, a pessoa sumia e ninguém tinha mais notícias. Era uma época difícil”, conta. Nas eleições de 1974, o MDB começou a mostrar a sua força elegendo um grande número de deputados e também o senador. Já era o início de que grandes mudanças iriam acontecer no futuro. Mesmo com o apoio popular, Fabiano não era bem visto aos olhos da ditadura e também foi alvo da repressão. “Mesmo com a carreira política, sempre tive meu escritório de advocacia próximo ao Fórum de Santos, que foi alvo dos militares. Quebraram tudo lá dentro e ainda levaram minhas duas funcionárias presas”, diz. Mas isso não fez o então deputado desistir. “Abri um outro escritório, desta vez, em São Paulo, mas perdi muitos clientes, porque as pessoas ficavam com medo. Eram poucos os que confiavam seus processos a mim”, comenta rindo.

Advogado, Nelson Fabiano relembra a censura que a imprensa sofreu durante a ditadura militar

proibia estudantes, professores e funcionários de estabelecimentos educacionais de falar sobre política. Caso descumprissem a lei, eram expulsos e exonerados de seus cargos. O advogado também participou da criação do diretório municipal de Santos do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que fazia oposição ao partido que apoiava os militares, a Aliança Renovadora Nacional (Arena). Em 1972, Fabiano e Marcelo Gatto, seu colega de partido, candidataram-se

e se elegeram como vereadores com o maior índice de votação. “Mesmo não sendo a maioria, conseguíamos fazer muita pressão em cima dos vereadores do Arena”. Mordomia Como vereador em Santos, Fabiano apresentou um projeto revogando a verba para o pagamento de despesas pessoais do general Bandeira Brasil, interventor no município. “Denunciamos a mordomia existente, mas, infelizmente, não foi aprovada, mas

mostrei naquele momento o que eu queria”, relembra. As despesas pagavam contas de luz, telefone da casa do general e os serviços de sua empregada, por exemplo. Gatto e Fabiano se destacaram tanto na Câmara de Santos que, em 1974, se candidataram a deputado federal e deputado estadual, respectivamente, e foram muito bem votados. “Em todas as sessões na Assembleia, eu pedia a palavra e comunicava que tal pessoa tinha sido desaparecida. Assim era publicada a informação no Diário Oficial. Caso

Últimos cassados O ano de 1976 foi o mais turbulento da vida do deputado. Ele e Marcelo Gatto foram cassados, sendo os últimos políticos a sofrerem este ato. Foram cassados por denunciarem a tortura e as prisões indevidas praticadas pelos militares. “Mesmo assim, antes de anunciarem a minha cassação e a de Gatto, ainda tentaram nos subornar, dizendo que, se nós desmentíssemos tudo, não seríamos cassados. Isso só nos deu força para fazer o certo”, relembra. “Nunca deixei de fazer política. Mesmo depois de cassado, fazia política nas ruas, na OAB, onde quer que eu fosse. Sempre mesclando com a minha paixão, que é advogar”. Atualmente, ele tem um escritório na cidade de Santos com outros colegas, localizado no bairro do Gonzaga. Analisando os protestos de hoje, Fabiano faz um paralelo com os movimentos que vivenciou de perto na época da ditadura. “Os jovens querem mudanças, mas não é com black blocs

Edição e diagrama: Jéssica Santoa PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

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Del Bosco: na luta política contra o golpe Ex-deputado federal relembra suas vivências e feitos contra o regime militar Carolina Kobayashi

Carolina Kobayashi “Qualquer má democracia é melhor do que uma boa ditadura, se é que possa existir alguma”. Essa é primeira frase que Joaquim Carlos Del Bosco Amaral tem em mente quando pensa no golpe militar de 1964. Advogado e político, foi por duas vezes vereador da cidade de Santos (1964 e 1968), duas vezes deputado estadual (1970 e 74) e três vezes deputado federal (1978, 1982 e 1988), sendo que na última delas foi eleito deputado constituinte. Em 1964, era primeiro suplente de um vereador. Quando o regime militar começou, ele assumiu o cargo. Esteve presente nos fechamentos da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa. Del Bosco Amaral também se recorda do momento em que Santos perdeu o direito de eleger seu prefeito: “A Cidade ficou sem eleições porque passou a ser considerada área de segurança nacional por conta do porto. Qualquer município de maior relevância imediatamente tornava-se de segurança nacional para que o prefeito fosse nomeado pelas forças do novo regime”, explica. O político usava a imprensa, que ainda passava por uma censura muito aguda, para denunciar atos praticados pela ditadura. Porém, nem sempre suas denúncias eram publicadas. Em 1970, a mando do coronel Erasmo Dias, Del Bosco Amaral ficou preso por oito dias no Segundo Batalhão de Caçadores, em São Vicente. No local, não havia cama. Todos os dias em que ficou preso, dormiu no cimento. “Saí de um comício, onde eu meti o pau no golpe. Quando cheguei em casa, encontrei a rua toda cercada por uns seis caminhões do Exército como se eu tivesse força para resistir. Levaram-me até o quartel. Não fui torturado. Como meu nome era forte para as eleições e houve uma série de protestos, eles acharam por bem me liberar

no sábado, véspera das eleições. Mesmo assim, fui eleito deputado estadual”. Segundo o ex-deputado, foi alegado na época que a causa da sua prisão teria sido por conta do aniversário de morte de Carlos Marighella (1911-1969), exdeputado federal e guerrilheiro, que foi assassinado em uma emboscada pelos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo. “Todas as pessoas que podiam ser passíveis de participar de movimentos que lembrassem a morte do Marighella, por exemplo, deviam ser presas. Eu, sem ter qualquer ligação, fui preso”. Após as reuniões da Assembleia Legislativa, em São Paulo, ele sempre era vigiado e seguido por carros de agentes da Marinha e do Exército, no caminho para sua casa, em Santos. Certa vez, já em Santos, parou o carro e foi até o indivíduo que o seguia: “Perguntei por que ele fazia aquilo. Ele me respondeu que era seu trabalho. Depois disso, ficamos conversando sobre o futuro do País e se a revolução ia prosperar”, relembra. Ajuda contra o golpe Foi na Assembleia Legislativa que o político encontrou uma das formas de lutar. Denunciou fatos contra o Destacamento de Operações de Informações Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi). Juntamente com o também advogado e exdeputado federal Airton Soares, iam até a porta do Doi-Codi e perguntavam quem estava preso. “Eles achavam estranho, mas acabavam fornecendo informações”, lembra. No Doi-Codi ocorreram os episódios com o jornalista Vladimir Herzog e o operário metalúrgico Manuel Fiel Filho. Ambos foram torturados e mortos. Del Bosco Amaral chegou a ir até o local da morte de Herzog para constatar sua morte. “Era visível

Ex-deputado federal Del Bosco Amaral, em seu escritório. “Pior que a censura, só a tortura”

que ele foi torturado e não havia se enforcado na cela”. Já Fiel Filho foi assassinado e seu corpo está desaparecido. O governador Paulo Egydio Martins também foi seu parceiro para ajudar outras pessoas durante o golpe. Chegou a ceder a sua casa e carro para esconder pessoas que estavam sendo procuradas pelo Exército. “Nas madrugadas, com o carro da Assembleia Legislativa, tirávamos pessoas de São Paulo e levávamos para um lugar incerto”. Censura e seus prejuízos A ditadura prejudicou movimentos culturais e artísticos. Livros foram queimados em praça pública. Os censores chegaram a vetar a publicação de receitas de bolo, caso alguma palavra sugerisse algo contra o regime militar. “Pior que a censura, só a tortura. Ela só aconteceu porque houve a censura; a tortura propicia que a censura não seja denunciada”, afirma. Na época, não era possível

levar os militares a julgamento. Eram julgados no quartel por outros militares. “Não podiam ser levados a julgamento os resultados de um ato institucional. Não havia para quem protestar e contestar”. Ele explicou que o golpe de 1964 fez o possível para acabar com os movimentos sindicais e estudantis, pois eram vistos como fonte de protestos e uma maneira de acionar a sociedade. Segundo ele, o golpe foi um desastre que atrasou o País em anos e os resquícios deste período perduram até os dias atuais. “Foi uma mancha negra no Brasil. Essa mancha ainda não foi lavada e só será limpa quando nós tivermos uma verdadeira e total liberdade de pensamento e opinião”. Brasil no presente Del Bosco Amaral afirma que muitos não conhecem a história do regime militar por completo, defendendo que deveria haver uma maneira de fornecer essas informações de uma forma mais

didática, principalmente para os jovens, sobre os atos institucionais. Ele também gostaria que os brasileiros tivessem a Constituição como livro de bolso. Com a mesma vontade de tentar melhorar o País, o político viu as manifestações que ocorreram no ano passado como uma forma de mostrar aos acomodados que alguma coisa não está andando bem no Brasil. “Mesmo que esses movimentos tenham sido aproveitados por elementos infiltrados – e não tenho dúvidas de que estavam a mando de algum lado político –, os movimentos precisam fazer uma limpeza interna. Começou a quebrar algo, o movimento deve sair para o outro lado. Mas depois deve-se procurar saber se eles foram presos e se não houve tortura”. Atualmente, Del Bosco Amaral tem um escritório de advocacia em Santos. Sempre otimista, para ele, o País pode melhorar: “Basta que as pessoas tenham jeito de fazer as coisas que lei propicia”.

Para advogado, movimento foi pacífico em Santos Camilla Laranjeira

Camilla Laranjeira Aos 83 anos de uma história de vida marcada por lembranças, o advogado, professor e exprefeito de Santos, Francisco Prado de Oliveira Ribeiro, relembra os principais aspectos do golpe militar de 1964. Para ele, mais conhecido como Chico Prado, o golpe na Cidade aconteceu de forma pacífica. ”Aqui, na Baixada Santista, nunca houve uma rebeldia muito grande. No meio político todos se davam muito bem”. Em meados de 1964 ele concorreu ao cargo de viceprefeito de Santos (naquela época votava-se no prefeito e também no vice, que, invariavelmente, não integravam a mesma chapa), e ganhou as eleições, tornandose, então, vice do prefeito eleito, engenheiro Silvio Fernandes Lopes. Durante o mandato, assumiu o cargo de prefeito por alguns dias. “Eu levei os melhores alunos da universidade para que trabalhassem comigo na Prefeitura”, revela.

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Prado foi preso em 1968 com base no Ato Institucional nº/5. Na ocasião, ele presidia a subseção santista da Ordem dos Advogados do Brasil. Ficou detido no então 2º Batalhão de Caçadores de São Vicente, junto com o amigo Oswaldo Justo, ex-prefeito de Santos. “Chegou comigo no quartel um advogado de São Paulo dizendo que não poderia ser preso, pois iria denunciar para a OAB. Justo olhou para ele e disse: Então, faça isso, pois o presidente está aqui em sua frente” , conta. Ele ficou preso cerca de dez dias, mas neste período foi bem tratado. “O militar que me interrogou era um colega professor e quem me levou para o xadrez foi um aluno, que até desculpou-se pelo ato”. A prisão se deu por conta da sua opção partidária, com uma postura dita de esquerda e com discursos que levavam a essa mesma linha de raciocínio. Para ele, mesmo com os atos violentos que aconteceram em várias partes do País, o Brasil

Edição e diagramação: Alexa Flambory PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

passa uma imagem pacifica e benéfica para os demais países do mundo. “Quando viajo para fora do País e tenho contato com pessoas de outras culturas, elas ficam impressionadas com a união que temos. Mesmo passando por alguns períodos como o golpe militar o Brasil nunca se separou”, revela. Chico Prado acrescenta que ampliou a sua visão sobre o golpe após tanto tempo: “É bom depois de 50 anos olhar o acontecimento de um ponto de vista histórico. A morte de Rubens Paiva (deputado federal santista, que foi preso, torturado e morto pelos órgãos de repressão no Rio de Janeiro) foi um ato muito violento, mas aqui em Santos a situação não passou dos limites, apesar do temor que as prisões causavam e especialmente pela possibilidade de os presos serem levados para outros locais como São Paulo, onde o golpe, ali sim, como em outras localidades, passava Francisco Prado: “Em Santos, o golpe não passou dos limites” dos limites”.

“Marcha com Deus foi o anúncio de uma longa noite de trevas”, diz Azevedo Cientista político, Aloysio Azevedo fala também sobre os movimentos sindicais no período ditatorial e as perspectivas para o futuro na era da tecnologia REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

Mayara Sampaio Em março de 1964, quando tropas do Exército foram às ruas derrubar o então presidente João Goulart, o cientista político Aloysio Azevedo foi um dos milhões de brasileiros que tiveram suas vidas alteradas com a implementação do regime, que viria perdurar até José Sarney assumir o cargo de presidente, em 1985. Um período marcado por torturas, centenas de pessoas perseguidas e mortas, além de um Congresso Nacional fechado três vezes e um cenário em que a imprensa sofreu censura por mais de uma década. Quando perguntado sobre suas memórias do tempo da ditadura, a primeira que vem à mente de Azevedo foi o dia 19 de março de 1964. “Foi durante a passeata da Família Com Deus pela Liberdade, momento que mergulhou de vez o Brasil na ditadura. Parecia que toda a classe média paulista me espremia contra uma porta de loja fechada na rua Barão de Itapetininga. Senhores e senhoras bem vestidos e de semblantes graves não paravam de passar e anunciavam ‘morte aos comunistas’”. A partir de então, Azevedo tomaria aquele episódio como um anúncio da longa noite de trevas que assistiria ao vivo e em cores. Engajamento Quando jovem, em Minas Gerais, Azevedo tinha o sonho de ser piloto de caça, que não se concretizou. Já em São Paulo, cidade que adotou a partir dos 17 anos, cursou a Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (USP) e trabalhou em agências de Publicidade. Com uma iniciação política dos tempos dos bancos universitários, ele passou a ingressar cada vez mais no ramo da Comunicação. “Meu início efetivo nas atividades políticas foi com a vida sindical. Quando estava beirando os 40 anos, surgiu o movimento sindical no ABC e o Lula, e acompanhei esse período sempre como um interessado, um curioso. Por isso, fui fazer vestibular para Sociologia Política, e depois o curso de Ciências Políticas”, diz. Sem saber como iniciar carreira na área, foi instruído a trabalhar em uma empresa que editava os jornais do sindicato. Foi então que descobriu sua vocação: a de planejador de ações sindicais. “Meu primeiro contato com a região de Santos foi quando disseram que eu tinha o perfil do Sindicato dos Metalúrgicos da Cosipa, que vivia uma situação delicada, e precisava de um assessor para ter uma campanha salarial eficiente”, conta Azevedo. Com a eclosão do Golpe Militar, foi demitido de seu trabalho na empresa Dennison Propaganda e, na ilegalidade, foi eleito secretário de Agitação e Propaganda do Comitê Estadual do Partido Comunista Brasileiro (PCB), legenda com que possuía ligações desde os tempos da Faculdade de Arquitetura. Porém, por discordar da luta armada e da conduta do partido, abandonou-o e ingressou no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), em 1968. “Nestas condições, trabalhei na assessoria política de vereadores da Câmara Municipal de São Paulo, com o Odon Pereira, e também em campanhas

Passeata da Família com Deus pela Liberdade, 19 de Março de 1964, momento em que o Brasil mergulhou na ditadura REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

Azevedo começou sua atividade política no meio sindical

eleitorais.” Porém, dali para frente, Azevedo decidiu dedicar sua carreira aos sindicatos de trabalhadores e estava decidido a completar sua formação acadêmica em Ciência Política. Sindicatos em ação Durante os anos de chumbo, as representações sindicais foram duramente atingidas por serem controladas com pulso forte pelo Ministério do Trabalho. Isso gerou um enfraquecimento dos sindicatos, especialmente na primeira metade do período de repressão.

Segundo Azevedo, a estrutura sindical teve que passar por transformações para suportar as pressões libertárias, fruto do esgotamento da ditadura e do colapso econômico do “milagre brasileiro”. A greve de conteúdo econômico logo se politizou, porque a força do movimento e a fragilidade da classe política propiciaram um papel de protagonista para os sindicatos. “Os agrupamentos ideológicos que formariam mais tarde o Partido dos Trabalhadores (PT) optaram por lançar a Central Única dos Trabalhadores (CUT),

enquanto nossos esforços na Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat), em agosto de 1981, continuaram privilegiando a unidade das entidades sindicais”, afirma. Conhecido por ser um dos primeiros a cunhar a expressão “sindicalismo de resultado”, Azevedo acredita que o impulso inicial do movimento não foi ter uma visão mercadológica, mas defender o sindicato da cooptação ideológico-partidária. “Por meio de lutas e negociações sindicais, nos empenhamos para ampliar a visão dos trabalhadores, com a inclusão em nossas pautas de assuntos que abrangessem a dimensão do cidadão”, explica o cientista político. Em linhas gerais, o sindicalismo de resultados conserva uma aversão ao engajamento partidário; mas proclama que o movimento sindical pode e deve fazer política. De acordo com o sindicalista e defensor do conceito, Luis Antônio Medeiros, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo em agosto de 1987, “todo sindicato que se preza faz parte da reprodução capitalista. É lutar para vender a mão-de-obra pelo preço mais alto possível”. Conhecido por seu trabalho

como comentarista político do programa Opinião, exibido pela extinta TV Mar, e também participar eventualmente da bancada do Jornal Enfoque, exibido na Santa Cecília TV, Azevedo atua em sua própria empresa de consultoria, especializada em questões estratégicas e formação de lideranças. Ele avalia que o movimento sindical sofre um momento de baixa mobilização em razão da falta de causas definidas nos dias atuais. “Nas décadas que antecederam a estabilização monetária, os sindicatos eram mais ativos porque tinham que lutar por perdas salariais, provocadas pela inflação. Com o controle da mesma e redistribuição de renda obtida nos últimos governos populares, o movimento perdeu seu papel. Isso sem contar uma monetarização e burocratização do sindicalismo.” Porém, Azevedo segue disposto a acreditar na função de relevância social do movimento sindical. “A chegada da era dos serviços e evoluções tecnológicas estão anunciando transformações colossais nas relações de trabalho. Portanto, um mundo novo está chegando e teremos que estar preparados”, conclui.

Edição e diagramação:Laís Dias PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

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Uma prisão ancorada no estuário A jornalista Lídia Maria de Mello escreveu livro sobre o navio que serviu como prisão para o seu pai em 1964 Murilo Costa “Meia hora depois, o prédio foi invadido por cerca de 200 policiais armados de metralhadoras. Tinha de tudo: Exército, fuzileiro naval, Força Pública, Polícia Civil... Tudo junto! Parecia uma guerra! Não tínhamos condições de resistir. Aí, nos meteram nos camburões e nos levaram para os porões do Dops, no Palácio da Polícia” (...) Amontoados nas celas, trabalhadores de inúmeras categorias se alternavam no ato de sentar e levantar, tentando dividir igualmente o estreito espaço. Soltaram até presos correcionais para poder dar lugar nos xadrezes para os trabalhadores”. A jornalista santista Lídia Maria de Melo, santista, nasceu no dia 28 de setembro de 1957. Licenciada em Letras pela Faculdade Don Domênico, de Guarujá, é também bacharel em Comunicação Social pela Universidade Católica de Santos. Ela é filha de uma das vítimas do golpe de 1964 e relatou isso em seu Trabalho de Conclusão de Curso “Raul Soares, um navio

tatuado em nós” .

O navio construído em 1900 pela empresa alemã HamburgSud era no início utilizado para trazer imigrantes da Europa para a América do Sul. Em 1925, foi vendido à empresa Lloyd Brasileiro, que o denominou Raul Soares e o utilizava como

navio de passageiros e cargueiro. Estava inativo no cais de Mocanguê, no Rio de Janeiro, quando foi requisitado pelos militares em abril de 1964. A embarcação ficou ancorada no canal do estuário, próximo à Ilha Barnabé. Em agosto daquele ano, Iradil Santos Melo, pai de Lídia, foi conduzido ao cais por uma van dos fuzileiros navais. Chegando lá, uma lancha o levou ao navio, onde muitas pessoas já se encontravam presas. Lá presenciou muitas atrocidades. “As pressões psicológicas tornaram-se ainda maiores”. Waldemar Neves Guerra, então presidente do Sindicato da Administração dos Serviços Portuários, foi um dos alvos mais frequentes por enfrentar diretamente o comandante Astolpho, chefe da guarda. “O comandante, então, mostrou sua força, colocando Waldemar em um cubículo ao lado da caldeira, durante 12 horas. Já desidratado de tanto suar, ele passou mais oito horas ao lado do frigorífico”, relata Lídia. Em conseqüência, ficou com a saúde debilitada até falecer. As doenças eram muito presentes no Raul Soares, que não dispunha de uma equipe de saúde. Thomaz Mack, médico e prisioneiro, ajudava junto ao comando da guarda para que os doentes fossem medicados em hospitais da Cidade. Recentemente, um reencontro

REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

A direita, Iradil Santos Melo, pai de Lídia Maria, pouco antes de embarcar no navio-presidio Raul Soares

histórico marcou a vida do médico. Ele e o aposentado Argeu Anacleto da Silva foram companheiros de prisão e se reencontraram 48 anos após a partida do navio. Como todos os outros, o pai de Lídia se encontrava em prisão preventiva e deveria ser libertado após 30 dias. Após um mês aprisionado, ouviu a frase: “Bom, legalmente o senhor está solto, em liberdade. Cumpriu a prisão preventiva. Agora, o senhor vai voltar para o navio por minha ordem e minha determinação”.

E foi enviado de volta ao Raul Soares. Em outubro, todos foram soltos e o navio seguiu para o Rio de Janeiro, onde foi desmontado e suas peças vendidas. Iradil era integrante do Sindicato dos Operários Portuários e ficou “internado” um mês e meio no navio. Mesmo com direito a voltar ao trabalho, a Companhia das Docas não quis aceitá-lo, e ele foi aposentado compulsoriamente. Indignado, entrou na Justiça para reivindicar a volta ao emprego e ganhou

a causa. De volta, ficou nas Docas até 1991, quando, para evitar a demissão de 5 mil funcionários, a empresa elaborou a demissão incentivada. Para garantir o emprego de amigos, já que era aposentado, Iradil se afastou. Lídia perdeu o pai em 1999. “Ele não foi um grande líder, era um trabalhador, um sindicalista. Mas, de qualquer forma, o que acontece dentro de uma casa quando a ditadura começa e empurra a porta dentro da sua casa, nenhum documento registra”.

Portuário ficou preso 92 dias no Raul Soares LuÍs Varela

Luis Varela No final da tarde de 17 de julho de 1964, Ademar dos Santos se encontrou no cais do Porto de Santos, em meio a tantas outras pessoas que aguardavam para serem levadas. “Eu já tinha certeza de que seria preso”, afirma. No dia anterior, já havia sido convocado ao Departamento Pessoal da Companhia das Docas, onde até então trabalhava. “Meu depoimento não os agradou, não falei o que eles queriam que eu falasse. No outro dia, vieram me prender”. Seu crime: subversão. Ele ainda se lembra do momento quando foi revistado. “Pediram-me para tirar a aliança, um cortador de unha, 30 cruzeiros e documentos de identificação”. Dentro do navio, os presos eram divididos em três porões e na parte superior, destinada aos incomunicáveis, aqueles que ainda deveriam prestar depoimentos no inquérito instaurado e, por isso, ficariam isolados de outros presos. Assim que chegou ao que se tornaria sua cela por 92 dias, viu que ficaria no camarote 29, o local destinado ao carpinteiro de bordo. O prisioneiro lembrou-se de que Jesus havia sido carpinteiro, assim como seu avô, e pensou: “Estou em casa. Mas eu me enganei”. A partir daí, começaram os dias marcados por tensão e humilhação. “A Polícia Marítima era encarregada de nos vigiar, e eles eram vigiados pela Marinha”, lembra. “Cada um viveu uma situação, principalmente enquanto estávamos isolados”, explica. “O tratamento era de acordo com o grau de envolvimento que eles achavam que o preso tinha com o Movimento Sindical ou com o Partido Comunista”.

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Aos 80 anos, Ademar dos Santos diz que nunca mais foi o mesmo após os três meses de prisão no navio

Interrogatório Ademar dos Santos foi interrogado tantas vezes que é difícil lembrar um número exato. “O oficial fazia as mesmas perguntas, lendo um livro com o depoimento anterior para ver se havia contradição”. Mas o prisioneiro manteve sua posição, até que irritou um dos interrogadores. “Um oficial deu um murro na mesa e disse que eu amava o Partido Comunista mais do que minha esposa e meus filhos”. Em determinado momento, ele recebeu um pedaço de papel. Caso escrevesse o nome de quem sabia serem comunistas, os oficiais disseram que estaria livre. “Eu me mantive firme, e sinceramente até hoje penso

Edição e diagramação: Laís Dias PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

onde fui buscar coragem”, afirma. Nem todos conseguiram resistir. Um estivador escreveu os nomes e depois se arrependeu, mas já era tarde. “No dia seguinte, todos estavam a bordo”. Santos afirma que esse era seu maior receio: “vacilar e entregar companheiros.” Mas a rotina no Raul Soares envolvia mais do que interrogatórios, pois, além de viverem em clima de constante tensão, os presos também eram obrigados a realizar a limpeza do navio. Para piorar, ele ainda ganhou a antipatia de um tenente em particular. “Para o pior serviço que havia a bordo, que era lá no Camarote 29, ele ia me buscar”. Em uma ocasião, houve um

acidente com a mangueira enquanto limpava a privada e, por azar, respingaram fezes na farda do tenente. Depois de quase três meses, os colegas reivindicaram que ele fosse trazido para o porão para se juntar aos demais. Lá embaixo, Ademarzinho, como ficou conhecido entre os presos por sua baixa estatura, encontrou diferentes grupos: “paiol da pólvora” para aqueles mais exaltados, “beco do sossego” para os mais quietos e “chora mansinho” para aqueles que estavam sempre se lastimando. Ele ficou no segundo, pois preferia ler, depois que foi permitido. O autor: Che Guevara. Enquanto as vítimas

continuavam presas, seus familiares ficaram para trás. Aos 30 anos, Ademar dos Santos havia deixado uma esposa e dois filhos, os quais só puderam visitálo depois de meses. O prisioneiro lamenta que a lei não fosse respeitada naqueles dias. “Com 30 dias, o advogado da minha família entrou com um habeas corpus para me libertar e conseguiu”. Ele foi chamado por um tenente, que rasgou o documento na sua frente. Mesmo quem era libertado não tinha tanta sorte. “Soltavam para cumprir o habeas corpus, depois iam prender de novo”. Até mesmo no dia da libertação, os presos sofreram tortura psicológica. “O sargento descia no porão e lia os nomes de quem seria liberado, criando uma tensão, quando, na verdade, todos seriam liberados naquele dia. Só que eles não queriam libertar todos de vez”. Ele foi solto por volta de meia-noite, na última leva de presos que deixaram o navio. Santos sempre foi uma pessoa calma, mas hoje, aos 80 anos de idade, ainda faz uso de calmantes. “Nunca mais fui a mesma pessoa”. Comissão da Verdade Para investigar os crimes cometidos durante o regime militar foi criada a Comissão Nacional da Verdade, em 2012. Ele esteve presente durante os depoimentos e teve a oportunidade de contar sua história. “Está aparecendo muita coisa que até agora a maioria do povo brasileiro ignorava”, diz e completa: “Tive a oportunidade de rever companheiros que não via há 50 anos”.

Relato de uma sobrevivente A advogada santista Sônia Morozetti relembra as cenas de tortura no Doi-Codi REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

Luciana Mohallem Quem não a conhece pode pensar que por trás daqueles olhos azuis existiu uma moçoila preparada apenas para cozinhar, casar e ter filhos. Não que ela tenha feito apenas isso, mas, nos fatídicos anos 70, as prioridades da jovem Sônia Maria de Oliveira Morozetti eram outras. “A educação recebida era para se tornar normalista, tocar piano e arrumar marido. Paquerava bastante, saía com as amigas para dançar. Mas eu lia muito. Demais mesmo. Fiz minha cabeça desde muito cedo”, revela a advogada, hoje com 67 anos de idade. Aos 15 anos, representante do Colégio Stella Maris na União dos Estudantes Secundaristas, a menina de cabelos cor de mel tinha tudo para aceitar e propagar os discursos politicamente corretos da época. Mas, atrás da aparente calmaria daqueles olhos, a inquietude juvenil se afeiçoou ao relato esquerdista de um colega. Essa seria sua passagem para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), do qual fez parte até o início deste século. Recém-formada em Direito pela Fundação Visconde de São Leopoldo, Sônia – então com 25 anos – havia aberto escritório com uma colega. Em paralelo, as reuniões com integrantes do PCB mantinhamse às escondidas. A ditadura estava instaurada desde 64 e a caça às bruxas era uma realidade muito próxima. Naquele outubro de 1975, o típico sobrado na Avenida Epitácio Pessoa, no Embaré, nunca mais seria o mesmo.

Rua Tomás Carvalhal, esquina com Tutóia, em São Paulo: a sede da Oban e, depois, do DOI/CODI

À porta, três distintos cavalheiros à procura da advogada. Identificaramse ao pai da jovem como clientes. Ledo engano. Travestidos de civis, os militares procuravam por comunistas. “Meu pai os atendeu. Ficou branco quando percebeu o que estava acontecendo”, diz a advogada. No andar de cima, sem tempo, Sônia se desfez de papéis, documentos e pertences que a ligassem ao partido. Deixou para trás a filha de três anos e a certeza de que sobreviveria nos próximos dias. Seguiu para o Planalto paulista na famosa C14 Chevrolet, viatura ícone do regime. Já na Capital, seria levada (ainda sem violência física) para o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna, mais conhecido pela sigla DoiCodi. Na mesma operação, a colega

de escritório, amigos e conhecidos também foram encaminhados sem mandado de prisão ao pior lugar para se estar naquela época. “Naquele dia, desceu a Serra uma carreata de C14”, relembra. Embora avisada, não teve tempo de fugir como alguns companheiros. Outros tantos também não tiveram boa sorte. “Eu ainda fui pega em casa, em ambiente familiar. Ainda permitiram que eu subisse a Serra com o Rogério (exmarido e pai dos três filhos). Imagine quem foi pego na rua, que nem teve tempo de se despedir”, lamenta. Frio na espinha À entrada do prédio do Doi-Codi, no número 921 da rua Tutóia, na Vila Mariana, em São Paulo, Sônia sentiu um frio na espinha. “Sim, estava com medo. Mas não perdi a cabeça. Sabia

Em A Tribuna, censura e prisão do editor-chefe

Nicole Siqueira A ditadura militar no Brasil trouxe um clima de opressão para os cidadãos e refletia no trabalho dos jornalistas. Em Santos, esse clima era maior pelo fato de a Cidade ser um polo de sindicatos operários e líderes políticos de esquerda, tornando-se um lugar estratégico para os militares. A situação piorou depois de instituído o Ato Institucional 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. O AI-5 ficou marcado como o endurecimento da ditadura. No Jornal A Tribuna, na madrugada seguinte ao AI- 5, o editor-chefe do jornal, Juarez Bahia, foi preso dentro da redação. O atual editorchefe, Carlos Conde, era da equipe de Bahia e estava presente na hora da prisão. “Por volta das duas da madrugada, estávamos na redação fechando o jornal e esperando para mandar para a gráfica. Chegaram um capitão do Exército e um sargento. O Bahia foi com o próprio carro, um fusca azul, ao 2º BC. Ele ficou uns dias preso e depois foi solto”, conta Conde. Outro jornalista que presenciou a prisão de Bahia foi Clóvis Galvão, que estava terminando de escrever uma matéria sobre o AI 5. “O Bahia me disse para eu ficar no jornal e avisar a direção sobre o que estava acontecendo”, lembra Galvão, que se tornou editorialista e trabalhou em A Tribuna até maio de 2013. Após sair da cadeia com a ajuda dos donos do jornal, Bahia pediu demissão. Esta foi a sua segunda prisão política. A primeira ocorreu em 1964, quando ele era chefe de gabinete do prefeito José Gomes, tendo inclusive ficado no navio Raul Soares, sob a acusação de subversão por ser comunista. Além de Bahia, só houve mais um caso de prisão de jornalista em A Tribuna. Foi de uma equipe detida enquanto fazia a cobertura da guerrilha do Ribeira. Foram

NICOLE SIQUEIRA

Salgado foi repórter político

presos sem acusação e a soltura aconteceu rapidamente. O jornal não sofreu tanto com a ditadura como jornais de São Paulo. A Tribuna assumiu uma postura neutra, noticiava objetivamente e evitava provocar o Governo. “A Tribuna não brigou, mas manteve a dignidade. Informava o que tinha que informar”, afirma Galvão. Em Santos, o órgão que controlava a censura era a Capitania dos Portos. “Fui chamado três vezes na Capitania para explicar matérias que foram publicadas”, conta Galvão. Segundo ele, toda noite agentes federais iam até a redação ver a edição seguinte e se não gostassem da matéria, era tirada da diagramação e entrava outra no lugar. O jornalista Reynaldo Salgado começou a trabalhar no jornal quando a situação já era mais liberal e não presenciou o grande clima

de tensão. Ele cobria a política municipal, ia à Câmara e via os embates que aconteciam entre os dois partidos (Arena e MDB). “Lembro que alguns vereadores não faziam seu trabalho direito com medo de serem presos e/ou perseguidos”. Um dos momentos mais marcantes para Salgado foi a comemoração dos santistas após a retomada da autonomia política e da campanha pela Diretas Já. “Em 26 de janeiro de 1984, houve uma manifestação na praia de Gonzaga pelas Diretas Já. Mesmo já tendo a autonomia política em Santos, uma multidão se reuniu pedindo eleições diretas para governador e presidente”, relembra Salgado. Os três são categóricos ao afirmar que o Brasil não terá mais uma ditadura. Para eles, as instituições brasileiras estão mais fortalecidas e a sociedade e a imprensa não aceitariam um novo governo opressor.

que aquilo era uma guerra e o que podia acontecer. Só não imaginei que seria tão rápido comigo; afinal, eu era da base do partido. Havia peixes maiores por aí”, relembra. Naquele edifício de três andares, onde hoje funciona o 36º Distrito Policial, cerca de cinco mil pessoas foram presas. Destas, muitas foram assassinadas. Sônia foi despida e recebeu um macacão. Compartilhou uma cela de 6m², sem ventilação, com outras 14 mulheres. Os gritos incansáveis pelos corredores demonstravam o início do horror. “Me levaram para uma sala e tiraram meu macacão, fiquei nua”, relata. A sessão começaria. Com a cabeça coberta por um capuz, tomou tapas, socos e choques por todo o corpo, inclusive nas partes íntimas. “Até hoje tenho pavor de tomar choque”, diz. Em

determinado momento, apagou. “Não sentia mais meu corpo, não respondia a mais nada. Chega uma hora em que a dor é tanta que você se anestesia”. Apesar do corpo inerte, Sônia percebeu o que estava acontecendo. “As sessões serviam para nos destruir psicologicamente, nossa integridade, nossa dignidade”, revela. Ela sabia que, apesar dos gritos dos torturadores nos seus ouvidos, nada ali estava sendo feito com base na emoção. “Poderia apostar que, durante uma sessão daquela, com toda aquela intensidade, o coração deles estava com batimentos normais”. Foram 28 dias de prisão e 10 quilos a menos. A soltura veio com a visita da Ordem dos Advogados do Brasil. De volta à casa no Embaré, restava a ela se reestruturar. “Foi muito difícil. A gente fica traumatizada, horrorizada”, diz. “Demorou um pouco para eu me recuperar. Casei, tive filhos e uma carreira bem-sucedida, mas aqueles dias nunca foram esquecidos”. Questionada sobre o que diria se reconhecesse um dos torturadores nos dias atuais, ela revela que talvez não tivesse controle emocional para lidar com o encontro. “Muitas pessoas foram torturadas olhando nos olhos dos seus algozes. Acho que aquele capuz, apesar do terror, me protegeu em relação às memórias”. Sobre o rancor, ela dispara: “Não guardei rancor, mas guardei um profundo horror. Como pode um ser humano fazer aquilo com outro? Como um torturador senta à mesa e olha nos olhos do filho?”. Perguntas para as quais ainda não têm resposta.

Ditadura ainda deixa marcas, diz Mascaro

Fernanda Caroline

O golpe militar de 1964 foi o início de uma ditadura que permaneceu até 1985. A falta de democracia decorrente do golpe foi a porta de entrada para inúmeros casos de perseguição política, censura e suspensão dos direitos constitucionais. Em 31 de março de 1964, tropas saem às ruas. Para evitar uma guerra civil, o presidente João Goulart (Jango) deixa o país para se refugiar no Uruguai. Os militares tomam o poder. Em 9 de abril, é decretado o Ato Institucional 1. Este por sua vez, cassa mandatos de opositores do regime militar. Para o jornalista Eymar Mascaro, que trabalhava no jornal O Diário, de Santos, em 1964, o golpe deixa marcas até hoje e seus efeitos na democracia são difíceis de serem esquecidos. “Foi um golpe na democracia, com a suspensão das garantias individuais. A Constituição foi rasgada impiedosamente e, sem garantia constitucional, qualquer pessoa podia ser presa sem mandado judicial. Residências eram invadidas por forças policiais, pessoas eram arrancadas do seio familiar e eram corriqueiros os desaparecimentos de pais e filhos, caso por exemplo, do deputado Rubens Paiva, torturado e morto no Doi-Codi do Rio, cujo corpo não foi encontrado até hoje”. Segundo Mascaro, a imprensa foi imediatamente censurada e vários jornalistas foram presos em todo o País. Era comum o censor fazer plantão nas redações. Jornalistas procuravam encontrar uma brecha para divulgar notícias que não interessavam à repressão.

“Em Santos, por exemplo, tivemos vários casos de arbitrariedade policial, com prisões de diversos jornalistas, entre os quais, dois notáveis homens da imprensa: Juarez Bahia e Carlos Conde, ambos trabalhavam em A Tribuna. Eu, pessoalmente, fui vítima de perseguição, mas não cheguei a ir para a prisão. Sofri muitas ameaças e fui obrigado a deixar de trabalhar em Santos e ser transferido para São Paulo “, conta. Para Mascaro, o golpe produz efeitos até hoje, mas, a possibilidade de uma nova ditadura parece distante. Para ele, um dos principais fatores da inexistência de clima para um novo golpe como o de 64 é que nas Forças Armadas não existem líderes capazes de conduzir uma nova insurreição. “Ainda existem famílias que procuram pelos corpos de pais, filhos e filhas. O legado de 64 é que a população se convenceu de que não há mais clima para voltarmos a ter no País a repetição de novo golpe militar. Apesar de o poder civil não corresponder também aos anseios da Nação”. Mascaro conta que não esquece desse tempo e relata o que para ele foi o capitulo mais marcante daquele período. ”No meu caso pessoal, jamais vou esquecer que no dia seguinte em que fui contratado para trabalhar como repórter político do Jornal do Brasil, na sucursal de São Paulo, fui indicado pela chefia de redação para fazer a cobertura do assassinato do companheiro Vladimir Herzog. Foram dias tristes, escrever para o jornal mais importante do Brasil as cenas chocantes sobre como o companheiro jornalista foi torturado e morto nas dependências do Doi-Codi”, finaliza.

Edição e diagramação: Alexa Flambory PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

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Sérvulo: resistência ao golpe e luta pela democracia Advogado santista fala sobre a repressão política que aconteceu na cidade durante a ditadura militar Juliana Justino Sérgio Sérvulo da Cunha foi procurador do Estado de São Paulo, chefe de gabinete do Ministério da Justiça e vice-prefeito de Santos durante a gestão Telma de Souza (1989-1992). Advogado, tem diversos livros e artigos jurídicos publicados. Aos 79 anos, Sérvulo é considerado um dos principais personagens de resistência ao golpe militar de 1964 na região. Sérvulo cursou Direito e Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) na década de 50, onde começou a se envolver com a política e militou na Juventude Universitária Católica. Depois de formado, voltou a Santos, onde abriu um escritório de advocacia. Também atuou como professor de Direito na Universidade Católica de Santos por 17 anos. Foi nesse período que viu de perto a repressão da ditadura no

Brasil. Apoiando o movimento dos estudantes, foi perseguido e preso. Com uma vida profissional e acadêmica construída lado a lado com a luta pela garantia dos direitos humanos, o advogado é reconhecido por sua atuação nesta área. Um dos momentos importantes da luta pela democracia no Brasil que contou com a sua participação foi o processo do impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em que foi um dos advogados de acusação. Apesar de ter a vida marcada pela ditadura, o advogado prefere não abordar o tema de forma pessoal. Para ele, o mais útil não é lembrar das atrocidades cometidas contra as pessoas, individualmente. Sem dúvida, perseguições, discriminações, torturas e assassinatos encobertos por autoridades ilegítimas ocorreram durante o regime militar. “Mas não é apenas isso que torna a ditadura

detestável. No Brasil, a partir da censura e da supressão das garantias constitucionais - como o habeas corpus, o mandado de segurança e o direito de se defender -, uma geração inteira ficou submetida ao medo e ao terror institucional, impedida de pensar e de decidir livremente o que queria ser e fazer”, diz Sérvulo. Dessa forma, tentava-se perpetuar as desigualdades dos sistemas político, econômico e social, já que a sociedade brasileira, principalmente os jovens, se mobilizava ansiosa por mudanças após acompanhar a Guerra do Vietnã e a Revolução Cubana. Ele acredita que seria necessário um tratado para expor todos os impactos políticos, econômicos e sociais da ditadura no Brasil e na Cidade, mas destaca que Santos, mais do que as outras cidades, suportou uma repressão explícita, por ser considerada um centro de oposição sindical e partidária. “Perdemos

a autonomia política e sofremos de participação. Para que haja um longo jejum de investimentos democracia não basta eleger os federais”. representantes: o povo precisa ter elementos eficazes de controle da Reforma Política administração pública”, destaca o Para ele, a democracia é advogado. essencial para a liberdade e para o Ele ressalta ainda que a mera controle do que acontece nas esferas restauração dos procedimentos da administração pública. “Na democráticos não representa a democracia, inexistindo censura, instauração de um regime de ainda se pode, bem ou mal, receber liberdade e igualdade nem significa informações sobre o que acontece; que haverá, automaticamente, mas na ditadura, a corrupção corre em todos os níveis da federação, governos eficientes. “Há muito que livre, solta e incógnita”. Para Sérvulo, os protestos fazer no aperfeiçoamento da nossa constantes que estão acontecendo democracia, e, hoje, a principal no Brasil desde junho de necessidade é a reforma política, 2013 reavivaram o conceito para que diminua a influência do de democracia na população, poder econômico nas eleições, nos especialmente nos jovens, que se partidos e no governo”, explica. viram envolvidos na luta política E completa: “Como uma doença, pela primeira vez. “Os protestos a ditadura é provocada por vírus são benéficos, na medida em que pairam no ar: os interesses que significam um despertar da desmedidos, a presunção, a consciência política e o desejo intolerância e o voluntarismo”.

Época dura para os sindicalistas

Caroline Souza O movimento sindical na Baixada Santista sempre teve um espaço importante, promovendo mobilizações, manifestações e greves. Os representantes comunistas estavam em quase todas as categorias de trabalhadores. A organização era tamanha que Santos ficou conhecida como Cidade Vermelha. Por isso, a região foi uma das mais perseguidas pelo golpe militar de 1964. “Tudo começou com o crescimento da esquerda, que chegou com o Partido Comunista Brasileiro e teve papel de destaque no governo João Goulart. Os EUA não aceitavam que o Brasil ocupasse um papel importante na esquerda e começaram a incentivar movimentos reacionários, como a Marcha da Família com Deus para Liberdade. E no dia 31 de março, foi decretado o Golpe Militar, com a destituição de Jango”, explica o ex-líder sindicalista, Uriel Villas Boas, que presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos entre 1993 e 2005. Villas Boas, que vivenciou todo o período da ditadura entre os sindicalistas, conta que a situação instaurada foi muito preocupante, com demissões em massa, prisões de lideranças sindicais e determinações sobre os comportamentos sociais. Os principais sindicatos da região tiveram intervenções e suas diretorias foram cassadas. Mesmo diante de toda essa problemática, o movimento social não parou, partindo inclusive para a guerrilha. “Foi uma época dura. Não se podia falar nada, nem música podiase fazer. Foi um momento muito ruim para a sociedade. Porém, fez com que movimentos sociais, mesmo com todo o risco, também saíssem, até conseguirmos a retomada do processo democrático”, relembra. Os partidos de esquerda buscavam militância em áreas que eram fundamentais, por isso boa parte dos operários era militante, o que ocasionou uma grande repressão à classe. “Se você faz uma greve com o pessoal do transporte coletivo, você

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para a cidade. Se faz com metalúrgicos pega muita gente”, conta. De acordo com o ex-sindicalista, a perseguição foi uma situação dramática, pois não se sabia o que ia acontecer. Tudo tinha que ser feito com o máximo de cuidado. Em 1968, Uriel entrou na diretoria do sindicato, que era formada por 24 pessoas. Naquele ano, com a retomada do Sindicato dos Metalúrgicos, eles tentaram organizar a categoria e um dos meios para isso foi a criação de um jornal, O Metalúrgico. “Tínhamos que ter muito cuidado com o que era dito, por isso montamos o jornal, onde colocávamos questões que fizessem as pessoas pensarem e participarem”. Por saber que estavam sendo vigiados a todo o momento, o tema principal do veículo eram campanhas salariais, sem citar greves. As reuniões do sindicato eram divulgadas abertamente, junto com a pauta e, nelas, discutiam-se questões econômicas e não sociais. “Apresentávamos a pauta e se a resposta das chefias fosse negativa, fazíamos um protesto vindo a pé de Cubatão, mas não falávamos em greve, em atingir a produção, tanto que de 1968 até 1982 não fizemos greve”. A intimidação era uma grande arma dos militares. Infiltrados, compareciam às reuniões para verificar quem era a favor e quem era contra as propostas. Quando o operário chegava ao trabalho, o chefe chamava-o para perguntar por que votou contra a empresa. Com medo de mais repressão, os operários não podiam ir ao sindicato reclamar. “Para tentar resolver a situação sem ocasionar mais problemas aos operários, criamos o Zé Protesto, personagem que dava lições de moral e falava com as pessoas por meio de mensagens”. Os operários mandavam as cartas, sem se identificar, e o Zé Protesto respondia. Os sindicalistas criaram esse personagem, pois sabiam que a chefia lia tudo a respeito, e muitas questões foram resolvidas dessa forma. O que não podia ser falado abertamente, a direção do sindicato

Edição e diagramação: Jéssica Santos PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014



CAROLINE SOUZA

O ex-líder sindical Uriel Villas Boas avalia as consequências do golpe militar para a classe operária

se reunia para conversar. Mas, como nem todos eram comunistas, algumas questões não podiam ser debatidas nem mesmo nessas reuniões. “Reuníamo-nos toda semana em uma casa, mas sempre em horários diferentes e nunca chegávamos juntos”. Apesar dos cuidados tomados, eles foram descobertos e sabiam que estavam sendo vigiados, já que recebiam recados intimidatórios, que chegavam por pessoas simples, que eram induzidas a falar, mesmo sem perceber. “Tínhamos que ter muita sensibilidade, esperteza e malícia para fazer as coisas. Uma vez o coronel Nero nos chamou para conversar e começou a citar todo o nosso roteiro de trabalho, fazendo pressão para não fazermos greve. O coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública, que mandava em tudo por aqui, entrou na sala nos chamando de ‘metalúrgicos safados’ e dizendo que não iríamos



“Foi uma época dura. Não se podia falar nada, nem música podia-se fazer. Foi um momento muito ruim para a sociedade. Porém, fez com que movimentos sociais, mesmo com todo o risco, também saíssem, até conseguirmos a retomada do processo democrático” Uriel Villas Boas, ex-líder sindical

fazer greve alguma. Esse era o estilo dele, intimidatório, agressivo, por isso o máximo de cuidado era necessário”. Villas Boas nunca sofreu violência, mas presenciou a de vários companheiros. “Eu fui preso em duas ocasiões, na condição de dirigente sindical. A primeira vez, uma por um dia, em Ouro Branco (MG), onde apoiava a luta dos trabalhadores da Açominas, e a segunda, também de apenas um dia, durante uma greve da Cosipa quando fazíamos piquete na saída de Santos. Mas vi muitos companheiros ficarem presos por dias, meses e até anos”. Para Villas Boas, o golpe intimidava os operários, fato que é possível sentir até hoje, com o desgaste dos movimentos sindicais. “Atualmente, não existe um lugar em Santos onde a esquerda se reúna, o que demonstra um reflexo da ditadura”, sintetiza.

Santos completa 30 anos da reconquista da democracia Para Carlos Pinto, em 1984, o povo votou naquele que constituía a melhor opção Vinícius Anselmo Santos foi duramente castigada pela ditadura militar, com a perda de sua autonomia política e administrativa, em função de seu enquadramento como área de segurança nacional. Foram longos 15 anos sem democracia, período em que o povo não podia exercer seu papel como eleitor, já que o Governo Federal era quem nomeava o prefeito da Cidade. Porém, em 1984, o pesadelo acabou. Gastone Righi, deputado federal a época pelo partido MDB, foi o responsável por conseguir a assinatura do presidente da República em exercício, Aureliano Chaves, no decreto que recuperava a democratização de Santos. Durante todos esses anos, diariamente, a tentativa da reconquista foi trabalhada. A Câmara Municipal de Santos também foi importante, pois vereadores como Adelino Rodrigues e Eduardo Castilho Salvador coordenavam as ações em prol da democracia, além do movimento estudantil e sindical. Na verdade, a Cidade toda estava na luta para que Santos conseguisse o direito de eleger um candidato a prefeito. O movimento cultural fazia manifestações esticando faixas e saindo às ruas. Santos foi a primeira cidade brasileira a reconquistar a autonomia. Depois de todos esses anos de

Nathamy Lopes

batalha, a Cidade estava em festa. E, assim, no dia 3 de junho de 1984, voltou a viver as emoções de uma eleição municipal. Uma eleição fora de época, de modo que todas as atenções da imprensa estiveram voltadas para a Cidade. Quatro dias antes da eleição, saiu uma pesquisa do Ibope garantindo que o vencedor da eleição de 1984 seria Antônio Rubens Lara com 20% de vantagem. Mas, Carlos Pinto, ex-assessor de Oswaldo Justo, hoje garante que aquela pesquisa foi forjada. “Um dos responsáveis pela pesquisa queria falar comigo. Ele disse que nós ganharíamos com diferença de 30 mil votos, mas queria que a pesquisa fosse paga”, acusa. De que fato, Justo seria eleito com aproximadamente 28 mil votos a mais que o segundo colocado, Rubens Lara. Pinto ressalta a consciência política do povo de Santos, que, mesmo lendo sobre a pesquisa que teria sido manipulada, manteve o seu voto. “As pessoas diziam que sabiam que Rubens Lara ia ganhar, mas que iam votar no Oswaldo”, lembra. Justo foi eleito o prefeito de Santos em 3 de junho de 1984 e tomou posse dia 9 de julho. Ele tivera a oportunidade de assumir a Prefeitura em 1968 quando Esmeraldo Tarquínio teve o seu mandato cassado e, como era vice-prefeito,

VINÍCIUS ANSELMO

Carlos Pinto, ex-assessor de Justo: pesquisa que indicava vitória de Lara teria sido forjada poderia ter assumido. Mas se recusou a fazê-lo. “Eu, na Prefeitura, só entro pela porta da frente”, disse. Segundo Carlos Pinto, aquela foi uma campanha sem muitas promessas e sem muitos gastos. “Ficar

16 anos sem votar pesou na hora de escolher um candidato e o povo votou mesmo em quem constituía a melhor opção. Hoje seria diferente, pois Santos perdeu a identidade política, a Cidade está apática”, diz.

Festa santista em Brasília

Acompanhar essa fase conturbada foi um aprendizado. O jornalista Luiz Dias Guimarães, atual secretário municipal de Turismo, que era repórter do jornal A Tribuna quando houve a assinatura do decreto-lei que restituiu a autonomia à Cidade, relembra os dias marcantes. “Foi feita a Caravana Autonomista Leonardo Roitman’ que levou a Brasília cerca de 200 pessoas em quatro

ônibus para reivindicar o direito de votar novamente para a escolha do prefeito. Os manifestantes vestiam camisas com letras grandes formando a palavra autonomia”, conta. A Cidade ficou mobilizada pelas ações das pessoas. Eram cartazes colocados nos carros, campanhas nas praias, blusas estampadas a favor do grito de justiça. Dias difíceis cercavam a sociedade que lutava pela autonomia. Como jornalista, Guimarães foi cobrir a caravana em Brasília. “Foi mui-

to emocionante. Fomos todos ao Senado e ocupamos todas as galerias vestidos e dispostos a mudar a situação”, recorda. Em Brasília, um determinado momento, Guimarães convidou o seu colega de reportagem Virgínio Sanches a ir ao Senado conferir os rumores que corriam em Brasília. Sem muito pensar, correram para conferir a informação. “Chegando ao Senado, perguntamos a um colega que estava trabalhando para outro jornal.Quando menos esperávamos, chegou até

Aliás, o ex-assessor parlamentar não está contente com a atual situação política e diz que não sabe se valeria a pena lutar se estourasse outro golpe. “Lutar para virar isso aí? Não sei...”, acrescenta.

nossas mãos o decreto assinado pelo presidente Aureliano Chaves, que estava exercendo a função no momento”, lembra. “Foi muito especial à sensação. Corremos com o papel nas mãos para exibi-lo para as pessoas da nossa caravana”. Essa emoção é considerada uma das mais gratificantes para o jornalista em sua carreira. “Tenho orgulho de ter sido o primeiro santista a tomar conhecimento da autonomia da Cidade. Tive a sorte de ser jornalista na hora e no momento certos”.

Tarquínio, símbolo da luta contra o golpe

Renan Fiuza

Esmeraldo Soares Tarquínio de Campos Filho ou apenas Esmeraldo Tarquínio -- nascido em São Vicente, no dia 12 de abril de 1927, tinha estatura alta e muito carisma e talvez tenha sido o maior símbolo da luta contra o golpe militar de 1964 na cidade de Santos. Teve uma infância muito breve, pois se viu obrigado a amadurecer e ter responsabilidade de adulto após a morte de seu pai, por tuberculose, quando tinha apenas sete anos de idade. Mudou-se para São Paulo com a mãe e a irmã, na ilusão de uma vida melhor. Foi aprendiz de marceneiro e gráfico, mas nunca deixou de estudar. A passagem foi curta e com 10 anos de idade retornou à Santos, cidade onde iria ganhar notoriedade e destaque no cenário político. Bacharel em Direito e posteriormente em Jornalismo, teve uma vida muito ativa, ainda como estudante. Muito observador, tinha Getúlio Vargas como ponto de partida, mas foi através da admiração por Jânio Quadros que Tarquínio nortearia seus rumos na política. “Meu pai era janista convicto. Eles eram do mesmo partido e pensavam de maneira parecida”, afirma Esmeraldinho Tarquínio, filho do político. Sua carreira política, de fato, começou depois da Segunda Guerra Mundial, quando ingressou no Partido Social Trabalhista, com 18

RENAN FIUZA

anos, levado por Álvaro Parente. Após fusão partidária, Tarquínio se tornou membro do Partido Social Progressista. Mas a passagem pela legenda não durou muito e logo filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro, em 1954, participando da campanha de Jânio Quadros para o governo de São Paulo. Em 1959, candidatou-se a vereador pelo PSB, sendo eleito com 689 votos, um número expressivo para época. A posse foi em janeiro de 1960. Após brigas internas, Tarquínio se desligou do partido, fundando com amigos a Ação Socialista. Foi líder do partido na Câmara de Santos, na época em que José Gomes era o prefeito e só se desligou do cargo quando foi eleito para ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa, em 1962, com 7.192 votos. Disputou a Prefeitura de Santos contra Silvio Fernandes Lopes em 1965, e, embora sendo derrotado, obteve a soma de 35 mil votos, aproximadamente. Um ano depois, foi reeleito para Assembléia Legislativa com a expressi- Esmeraldinho Tarquínio: o golpe militar interrompeu a evolução política do País va votação de 32.520 sufrágios. seu mandato cassado e proibido de mandato em solidariedade, recu- para o País, pois interrompeu uma exercer suas funções como legítimo sando-se a entrar na Prefeitura pela evolução política. Mas, hoje, não Cassação Historicamente, Santos sempre representante do povo. “No dia em “porta dos fundos”, como disse. vejo o militar como meu adversáCom a cassação de Tarquí- rio ou inimigo, pois nunca fui vítifoi uma cidade de vanguarda e de que foi cassado, ele ficou muito reluta, sendo conhecida como a Mos- voltado. Mas nunca demonstrou ódio nio e a renúncia de Justo, a ci- ma física deles nem meu pai. Pelo cou brasileira. Símbolo de um proje- por ninguém. Apenas uma raiva na- dade de Santos foi submetida à menos, ele nunca falou nada para to, Esmeraldo Tarquínio viu o sonho tural e passageira”, relembra o filho. intervenção federal, sendo consi- mim”, relembra Esmeraldinho, que O vice-prefeito eleito de San- derada área de segurança nacional. foi eleito vice-prefeito de Santos em de se tornar prefeito interrompido “O golpe militar fui muito ruim 1984 na chapa com Oswaldo Justo. em março de 1969, quando teve o tos, Oswaldo Justo, renunciou ao Edição e diagramação: Jéssica Santos PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

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Cidade de Santos: um passeio pelas memórias da ditadura O extinto Jornal Cidade de Santos ainda guarda um acervo completo, disponivel para consulta, da época da ditadura militar REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

Jéssica Bitencourt Como outros veículos que existiam na Baixada Santista na época, o extinto jornal Cidade de Santos também fez uma ampla cobertura de momentos importantes da ditadura militar e seus impactos na cidade e região. O periódico ficou em circulação por 20 anos (1967 – 1987) e há um acervo completo disponível para consulta na Hemeroteca Roldão Mendes Rosa, no Centro de Cultura Patrícia Galvão. O Cidade de Santos adotava uma postura moderna para seu tempo. Passou por diversas linhas editoriais, mas sempre manteve as características originais, como denunciar a corrupção e tratar temas de interesse público, como eram os episódios decorrentes do golpe militar de 1964. Na capa do veículo, em 14 de dezembro de 1968, estava estampada a manchete Sai novo Ato Institucional – Congresso entra em Recesso sobre o AI-5. Um parágrafo destacado faz o resumo dos pontos principais do documento, ficando clara a urgência em passar a informação. A notícia é iniciada com a citação: “O Governo da Revolução decidiu editar ontem um novo Ato Institucional – o

de nº 5, que dentre outras coisas, lhe atribui o direito a decretar o recesso de qualquer Câmara Legislativa por tempo indeterminado – isto é, até que o presidente da República a convoque de novo. E com base nisso, também ontem o presidente Costa e Silva promulgou o Ato Institucional nº 5, pelo qual determina que o Congresso Nacional entre em recesso”.

A matéria trazia todas as prerrogativas que o AI-5 garantia ao presidente. O parágrafo é conciso e objetivo, e em tom de surpresa, informava que o Ato ha-via começado a vigorar no dia anterior (13), sem prazo de vigência. No topo da página 4 da mesma edição, vinha uma reprodução do texto do Ato, e embaixo um artigo intitulado General Silvio recomenda prudência, listando uma série de acontecimentos resultantes do AI-5. Naquela manhã, a edição do matutino O Estado de S. Paulo não chegou às bancas, como uma tentativa do governo de evitar notícias que contribuíssem para um ‘acirramento dos ânimos’ junto a população. Os agentes federais do Departamento de Ordem Política e Social também apreenderam o Jornal da Tarde, incluindo o que havia sido distribuído. No próximo exemplar, dia 15 de dezembro, o periódico não fazia menção al-guma ao AI-5. Apenas na página 2, constavam algumas poucas notas informativas sobre a repercussão dos acontecimentos do Brasil no exterior. Na Colômbia, a opinião pública acompanhava apreensiva o desenrolar dos fatos, pois todos os jornais colombianos do dia anterior haviam dedicado colunas inteiras às notícias procedentes do Brasil, mostrando o peso da medida que o governo estava impondo à imprensa brasileira. Os jornais de Portugal se ocuparam com destaque dos acontecimentos polí-

AI-5, foi reservada. Nas edições anteriores, o Cidade de Santos fez a publicação de uma entrevista exclusiva com tom de vitória, por voto popular, do candidato pelo partido de oposição, o MDB. O destaque ficou com a manchete da edição, Deu Criolo na cabeça! No dia 14 de março de 1969, a capa da edição trazia a manchete Tarquínio Cassado em letras garrafais. Abaixo, a segunda manchete falava do regresso da cápsula do Apolo-9 e o resgate do terceiro astronauta, com parágrafo explicativo. A página foi completada com outras notícias da época. Bandeira Brasil Quase um mês após a cassação de Tarquínio, uma nova manchete roubou a cena no Cidade de Santos. No dia 11 de abril do mesmo ano, letras gigantes anunciavam Nomeado o nosso interventor, é o General Bandeira Brasil. O primeiro parágrafo da matéria fazia a apresentação do novo prefeito, nomeado por decreto presidencial, e explicava que ele ainda não viria a Santos. Uma das fotos do acervo do extinto jornal Cidade de Santos, que retrata o periodo da ditadura. Bandeira Brasil estava visitando os filhos e netos no Rio de Janeiro, ticos brasileiros, mas o país se absteve de visando classe social, mas salvaguardando a comentar a respeito. De Santiago do Chile, a ordem constituída e a segurança nacional. e a situação cau-sava problemas para a Sociedade Interamericana de Imprensa enviou Não houve questionamentos sobre a morte cidade, pois o mandato do prefeito Silvio um telegrama pedindo o restabelecimento do jornalista. A edição é completada com Fernandes Lopes estava para terminar. A matéria contava ainda que o interventor da liberdade de imprensa no Brasil. Todas outras notícias. A página 2, que costumava as notas tinham letras pequenas e ocupavam reportar fatos de interesse público, agora é nomeado teve atuação de destaque na uma coluna menor do que a metade da página. preenchida com artigos religiosos, e a maior crise de renúncia de Jânio Quadros e na Nas edições seguintes do Cidade de parte do periódico traz apenas notícias leves preparação da Revolução de 1964. As Santos, as páginas mudaram em relação ao que incluem artigos sobre medicina, cultura, lembranças causariam comoção na população conteúdo. Eram feitas poucas menções ao esporte e notícias internacionais. A parte santista e este era um exemplo raro de governo e o veículo se limitava a comunicar de entretenimento, caracterizada por jogos coragem e desafio expresso no veículo as medidas adotadas pelo Executivo brasileiro e cartoons, passa a ocupar várias páginas. em pleno vigor do Ato Institucional nº 5. O General Bandeira Brasil assumiu o sem qualquer opinião dos jornalistas. Na edição do dia 28, o veículo publicou uma pequena nota sobre o enterro de governo no final do mês. No dia 29 de abril, a Vladimir Herzog Herzog, intitulada Sepultado o jornalista manchete do Cidade de Santos dizia Bandeira No exemplar de 27 de outubro de envolvido em subversão. Não se falava em Assumiu, outra vez em letras gigantes. O 1975, dois dias após a morte do jornalista investigação. A nota era simples e relatava parágrafo a seguir anunciava que o general Vladimir Herzog, consta apenas uma nota 800 presentes, entre eles jornalistas, estava em exercício da função de interventor oficial do Comando do II Exército. A capa artistas, estudantes, amigos e parentes. federal em Santos, e que a Prefeitura lhe foi da edição não informa sobre o assunto. O sepultamento foi feito em rito israelita. entregue pelo Major Castro Faria, que esteve As notas enumeradas contam uma Não foi explorado o fato de o jornalista no poder por duas semanas, após o final do sequência de fatos sobre a vida de Her- ser judeu, pois a tradição judaica manda mandato do prefeito Silvio Fernandes Lopes. zog, citados por companheiros: seu que os suicidas sejam sepultados em local Liberdade comparecimento ao Doi-Codi para prestar separado. Ele foi enterrado no Cemitério O Cidade de Santos publicou, no dia 4 de declarações atendendo a uma intimação, Israelita do Butantã, porque foram vistas a confissão sobre sua ligação e atividades as marcas da tortura em seu corpo quando junho de 1984, a manchete Justo na Cabeça, criminosas com o comunismo e com o PCB, os membros da comunidade israelita o acompanhada de enormes fotografias. Após 15 anos de governos arbitrários, o fato de ter ficado sozinho e, finalmente, ter preparavam para o funeral. No dia 29, e intervenções, Santos sido encontrado enforcado, como se houvesse nada mais foi divulgado sobre o assunto. nomeações contava com um novo prefeito eleito se suicidado. O veículo informa ainda que foi pelo voto popular: Oswaldo Justo. A solicitada uma perícia técnica à Secretaria de Esmeraldo Tarquínio Segurança e declara que as prisões efetuadas A cobertura da cassação do prefeito eleito matéria mostrava a aberração que foi até aquela data se enquadram dentro da lei, não Esmeraldo Tarquínio, no ano seguinte ao a cassação da autonomia dos santistas.

Depois de 15 anos, o direito de eleger o prefeito Vanessa Pimentel Em 31 março de 1964, o Brasil sofria um golpe militar e perdia sua liberdade política. Hoje, 50 anos depois, o país relembra ainda com gosto amargo, os anos sombrios pelo qual passou. Santos, cidade operária, de grande importância econômica devido ao Porto, sentiu o golpe na pele, literalmente. Vista pelos militares como uma ameaça, em 1969 eles decretaram a intervenção política e os cidadãos santistas perderam o direito de eleger o prefeito. O jornal Cidade de Santos foi, na época, um dos mais importantes e bateu de frente com as imposições militares. Considerado um veículo combativo, as manchetes sobre a volta da autonomia de Santos eram quase que diárias. “O jornal era feito com muita garra e de forma valente. Nós entrevistávamos pessoas de

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todos os segmentos para que as matérias sobre a volta da autonomia política para a Cidade ganhassem amplitude”, conta Francisco La Scala Júnior, repórter do jornal na época. Ele acrescenta que Santos foi a primeira cidade do Brasil a retomar a autonomia política e acredita que isto foi fruto da luta do povo. “Em 1983, o Santos Futebol Clube foi finalista do Campeonato Brasileiro. E no primeiro jogo contra o Flamengo, no Morumbi os torcedores carregavam algumas faixas que pediam a volta da autonomia da cidade. A Rede Globo cobriu a partida, mas não mostrou o apelo da torcida. Já o Cidade de Santos fez disso manchete”, relembra o ex-repórter do veículo. Com greves acontecendo em todo o País e manifestações com quase cinco milhões de pessoas nas ruas exigindo as eleições diretas, a ditadura perde força. Apenas em 9 de julho de 1984, Santos re-

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conquistou a autonomia política. Oswaldo Justo e Esmeraldo Tarquínio de Campos Neto foram empossados nos cargos de prefeito e vice-prefeito, encerrando o ciclo de autoritarismo iniciado em 1969. No dia 3 de junho, os cidadãos santistas saíram para votar depois de 15 anos sem este direito. Com o título “E SANTOS RECUPEROU SEU DIREITO DE CIDADANIA”, o jornal Cidade de Santos trazia um caderno especial sobre as eleições para prefeito naquele ano de 1984. “Justo na cabeça” Foi desta forma que o Cidade informava aos eleitores o vencedor das eleições à Prefeitura de Santos. Oswaldo Justo, do PMDB, recebeu a maioria dos votos. Encerrava-se assim, o período triste pelo qual a Cidade passou. Na edição de 10 de julho de 1984, é possível notar até certa reverência ao político eleito

e alívio no conteúdo das matérias. “Muita emoção na posse de Justo” ou “De pé, o povo escuta Tarquínio” demonstram o quanto o povo, inclusive a imprensa, estava feliz com a volta da democracia. O episódio do último dia do prefeito nomeado pelos militares, Paulo Gomes Barbosa, também foi contado com detalhes e até certa ironia pelo Cidade de Santos. “Ovos, na saída inglória de Barbosa” era o título da matéria que descreveu a cena. Uma multidão o esperava na praça Mauá. Justo, o prefeito eleito, acompanhou a saída de Barbosa até o carro, para tentar diminuir as ofensas ao ex-nomeado. A atitude de Justo com Barbosa foi muito elogiada, vista como elegante e corajosa. Nas escadarias da Prefeitura de Santos, Justo sorri e acena para a multidão que agradecida, segue em manifestações pelas Diretas-Já em busca das eleições presidenciais.

Uma década e meia de sombras O livro “Sombra de Santos - O Longo Caminho de Volta” é uma obra histórica que contextualiza os tempos difíceis durante a ditadura FOTOS REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

Thamires Teixeira Barbosa Uma raridade nas bibliotecas da Cidade, o livro “Sombras sobre Santos. - O Longo Caminho de Volta” é uma das poucas obras que retratam a história da Cidade durante a ditadura instaurada a partir de 1964. O livro-reportagem de Ricardo Marques da Silva e Mauri Alexandrino traz como título uma metáfora da dominação militar de Santos, que marcou a perda de sua autonomia política e administrativa e seu enquadramento como área de Segurança Nacional. Às vésperas do golpe militar, Santos vivia o auge da agitação política e social pela qual passava o País. Portuária e cosmopolita, a cidade era conhecida como um município oposicionista, lar de imigrantes europeus que haviam trazido consigo ideais anarquistas e comunistas. Com uma ampla organização sindical, a Cidade era palco de grandes greves, em uma intensa luta por direitos, chegando ao ponto de ser marcada por epítetos como “Moscou Brasileira” e “Cidade Vermelha”. A repressão do novo regime atingiu a Cidade: houve invasão de sindicatos e cassacão de políticos. As eleições foram canceladas, e o prefeito da época, teve seus direitos políticos suspensos por dez anos. Seu mandato foi completado por um interventor militar, o capitão de-

fragata Fernando Hortalla Riedel. Antes do golpe, em 1961, o então prefeito eleito, o engenheiro Luiz La Scala Júnior, foi vítima de acidente automobilístico fatal às vésperas de tomar posse. Gomes, que era o viceprefeito eleito, assumiu o cargo em seu lugar. Em razão do golpe, a Cidade sofreu danos irreversíveis, sufocando a forte identidade criada desde o início do século passado, com o movimento anarco-sindicalista. Além da perda de sua autonomia política, Santos também haveria de ser um dos destinos mais temidos por aqueles que eram “recolhidos” pelos militares. No decorrer do livro, os autores contam sobre a utilização de um velho navio alemão, rebatizado de Raul Soares, que atuava como um presídio político no estuário santista. A embarcação não atuava somente como presídio. Sua especialidade consistia em torturas físicas e psicológicas, a quais foram submetidos os presos que eram jogados em seus porões. As sombras, como mostradas pelo livro, não foram somente restritas aos quepes sobre a mesa do Salão Nobre da Prefeitura de Santos, durante a posse do interventor federal. A leitura do livro nos faz pensar como seria o “Porto Vermelho”, com toda a sua prosperidade econômica, cultural, histórica e política, caso não tivesse sido subjugado pela ditadura.

Lideranças santistas se empenharam na luta pela redemocratização do País Thamires Rodrigues

Em 31 de março de 1964, após o episódio conhecido como golpe de 64, o Brasil passou por um período difícil, de repressão e de falta de democracia e liberdade. Muitos brasileiros que se opuseram ao regime autoritário que se instalou lutaram na busca dos seus ideais, que, obviamente, não iam ao encontro das teses golpistas. Dentre estes brasileiros se destacaram políticos que nasceram ou militaram na região como, por exemplo, Rubens Lara, Marcelo Gato, Mário Covas, Moacir de Oliveira e Rubens Paiva, todos já falecidos. Eles foram muito importantes nessa luta. O ex-governador Mário Covas, iniciou sua vida pública em 1961, quando se candidatou ao cargo de prefeito de Santos. Foi

derrotado, mas em 1962 elegeuse deputado federal e em 1965 foi um dos fundadores do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição ao regime militar. Em 1968, se tornou líder da bancada oposicionista na Câmara dos Deputados, mas um ano depois, após a edição do Ato Institucional 5, foi cassado e perdeu seus direitos políticos. Com isso, se dedicou à engenharia. Em 1979, reconquistou seus direitos políticos e retomou sua luta contra a ditadura, tornandose um dos principais líderes de oposição. Com a redemocratização do País, Covas elegeu-se senador da República e governador de São Paulo. Faleceu em março de 2001. Rubens Lara iniciou sua carreira política no MDB, por indicação do deputado Covas. Formado em Direito pela Faculdade Católica de

Santos e mestre pela Universidade Metropolitana de Santos, foi eleito vereador em Santos por três vezes e em 1978 elegeu-se deputado estadual, sendo reeleito por duas vezes. Em 1988, Lara participou da bancada de deputados estaduais que fundaram o PSDB. Durante o ano de 2002, exerceu o cargo de secretáriochefe da Casa Civil, juntamente com a presidência do Conselho de Administração da Cetesb. Nos anos de 2006 e 2007, foi membro da Executiva Estadual do partido. Faleceu em março de 2008. O ex-vereador de Santos, Moacir de Oliveira, também foi um dos grandes símbolos da luta pela redemocratização e autonomia de Santos. Foi vereador durante 11 anos pelo MDB, foi preso e torturado durante sua luta contra o regime militar. De 1981 a 1983, foi eleito

presidente da Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara. Nos últimos anos de sua vida, filiou-se ao Partido Popular Socialista, em Santos, onde atuava como coordenador do Núcleo Temático da Militância Democrática e Socialista Cláudio Ribeiro. Faleceu em agosto de 2013. Alberto Marcelo Gato era químico e advogado e iniciou sua vida política e sindical em 1963 quando trabalhava na Cosipa. Em 1968 se tornou presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos. Já em 1972, elegeu-se vereador, mas renunciou ao cargo para poder assumir como deputado federal em 1975, eleito que fora pelo MDB no ano anterior. Foi cassado pelo regime militar em 1978. Durante o golpe, Gato lutou pelo restabelecimento da democracia no Brasil e pelas melhores condições de vida da classe trabalhadora.

Terminou sua carreira como diretor de Assuntos Jurídicos do Sindicato Nacional dos Aposentados. Faleceu em novembro de 2012. Rubens Paiva iniciou sua carreira política em 1962, quando foi eleito deputado federal pelo PTB em São Paulo. Devido ao golpe de 1964 teve o mandato cassado. Como parlamentar participou de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que examinou as atividades do Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Paiva foi preso, torturado e morto no Rio de Janeiro. Nunca descobriram a data exata da sua morte, pois foi dado como desaparecido. Mas, em 1996, após ser sancionada a Lei dos Desaparecidos, foi emitido um atestado de óbito que reconheceu oficialmente sua morte. Entretanto, seu corpo nunca foi encontrado.

Edição e diagramação: Jéssica Santos PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

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Uma ditadura no Porto de Santos O livro ‘Os Vira-Latas da Madrugada’ conta uma história de amor durante o golpe Rafe Aguiar

Luiz Henrique Antunes Escrito pelo escritor e jornalista Adelto Gonçalves, primeiramente com apenas 18 anos e finalizado aos 26, o romance Os Vira-Latas da Madrugada deu vida a um período obscuro da história brasileira. Centrado na zona portuária de Santos, o romance conta a história de amor entre um rapaz e uma jovem prostituta. O ambiente da trama se passa em um período que cobre o golpe de 1964. A história saltava aos olhos do ainda garoto de 12 anos. Morador do bairro do Paquetá, junto ao Largo Teresa Cristina, na antiga Boca do Lixo santista, área da zona portuária que abrigava sindicatos e boates na qual circulavam tripulantes de diversas partes do mundo, bêbados, malandros de cais e prostitutas, Gonçalves presenciou as mudanças da época. Com a instauração do governo ditatorial, o autor tomou nota daquilo que iria durar por 21 anos. O dia a dia dos trabalhadores portuários e dos conflitos entre militares e sindicalistas foram registrados em sua memória de menino. A inspiração para escrever o romance surgiu da observação atenta de pessoas reais e de fatos verídicos. Para evitar a identificação de agentes presentes na obra foram usados nomes fictícios. O medo da censura era constante e não valia o risco citar nomes verdadeiros. “O livro tem

Adelto Gonçalves diz que o livro pode ter uma segunda edição atualizada, incluindo o prefácio censurado

tom pessimista, pois fala de como a espécie humana é capaz de torturar o semelhante a troco de nada”, enfatiza Gonçalves. A linguagem lírica e de prosa poética é marca registrada em todo o livro. No intervalo entre cada capítulo, Gonçalves faz algumas confissões sobre o período. A pausa na história mostra o olhar singular de quem é personagem e ao mesmo tempo autor. Entre os locais citados, havia o Bar Estrela da Manhã, no qual alguns personagens circulavam. Homens que saíam embriagados do botequim viravam vítimas de meninos pobres que moravam próximo ao lugar. Eles apanhavam o dinheiro dos bêbados e fugiam. Esses pequenos ficaram conhecidos como vira-

latas da madrugada, nome que foi escolhido para o livro. Uma das passagens mais explícitas da visão do autor refere-se à atmosfera do navio prisão Raul Soares: “Os porões do navio estavam transformados em um grande calabouço, cheirando a suor, mijo e merda. Aqueles que tinham caído primeiro dormiam em colchões e outros nos beliches”. Num romance realista sobre a ditadura, o autor deixa clara sua posição política, mas de um ponto de vista próprio. “Em uma das passagens, uso uma espécie de discurso de um coletor de jogo do bicho. Com ideias anarquistas, o coletor faz uma crítica aos ideais capitalistas e comunistas. Essa foi uma forma de expressar

a minha visão na época por meio de uma personagem”, ressalta. Premiação e prefácio Em 1980, Os Vira-Latas da Madrugada foi um dos vencedores do Prêmio Nacional José Lins do Rego, certificando a obra. Além disso, outra parte do livro também chamou a atenção, mas desta vez não pelo enredo contado. O prefácio escrito pelo jornalista Marcos Faerman (1944-1999) foi um caso à parte. Devido ao medo de a obra ser censurada, a Livraria José Olympio Editora, que estava sob intervenção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), suspendeu na última hora o prefácio de Faerman, que era opositor ao regime vigente. O temor era

que ocorressem represálias por parte do governo militar. A gráfica recolheu os exemplares e arrancou as páginas do prefácio. Curiosamente, a versão final do livro começa na página sete. Um pouco do autor Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre em Língua e Literatura Espanholas pela Universidade de São Paulo (USP), Adelto Gonçalves estudou de 1957 a 1961 na escola do Sindicato dos Operários Portuários de Santos ainda na infância. Em 1961, ganhou medalha de melhor aluno da classe, recebendo cumprimentos do então presidente da República, João Goulart, que visitava o sindicato. Da janela de sua casa, presenciou a repressão dos militares aos dirigentes do Sindicato dos Operários Portuários, experiência contada no livro. Como jornalista, foi subeditor de Política de O Estado de S.Paulo e repórter e editor da Folha da Tarde; da revista Placar; e do jornal A Tribuna, além de outras contribuições para veículos nacionais e internacionais. Quanto à obra, Gonçalves diz que a editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP, já o contatou para uma segunda edição atualizada, inclusive com a publicação do prefácio “censurado” e um estudo introdutório do poeta Ademir Demarchi. A primeira versão está esgotada.

A saga dos estivadores santistas Paula Matos

Porto Vermelho: os estivadores santistas no sindicato e na política (Rio

de Janeiro, Paz e Terra, 1981) conta a história de uma associação operária, mostrando muitos aspectos relevantes da história do País. A socióloga Ingrid Sarti faz uma análise do contexto social e político em que o Sindicato dos Estivadores de Santos desenvolveu sua atividade de 1920 a 1964, enfatizando a rotina da Companhia Docas. Considera que os operários escreveram algumas das páginas mais importantes da história do movimento operáriosindical brasileiro. A escritora explica a diferenciação na escala de trabalho, cujos sindicalizados são por vezes favorecidos devido à sua relação com o sindicato. O conflito político-social também é abordado, esclarecendo a questão da regulação do trabalho da estiva e seus conflitos. A relação com o Estado, o funcionamento e organização das Docas são minuciosamente explicadas na obra. Porto Vermelho discute a igualdade da lei para os trabalhadores e apresenta as alterações na legislação devido às trocas de governo. Ingrid Sarti, profissional ímpar Ingrid Piera Andersen Sarti é socióloga formada pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Ciência Política e doutorado pela Universidade de Stanford, na Califórnia. Dirigiu seu interesse para as áreas sindical, movimento operário

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PAULA MATTOS

e questões da mulher. Estudiosa das áreas de Ciências Humanas e Política, atualmente é professora de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente do Fórum das Universidades do Mercosul. Poliglota, fala inglês, espanhol, italiano e francês. Além de Porto Vermelho, Ingrid publicou Da outra margem do rio: os

partidos políticos em busca da utopia (São Paulo, Relume Dumará, 2006), entre outros.

Sindicalismo e ditadura Para Ingrid, o golpe militar de 1964 veio para mostrar ao movimento operário e sindical que a correlação de forças não lhe favorecia, ao contrário do que imaginavam até às vésperas do rompimento da ordem democrática. “Ao vacilarem, os interessados deixaram a porta aberta aos indesejáveis, virulentos antioperários que buscaram brecha na fissura e fizeram da ruptura uma bandeira que anulava outra, a da unidade”. Por isso, o livro de Ingrid é também a história do conflito de “bagrinhos” contra “tubarões” no “porto vermelho”, uma versão inédita de um velho conflito, o de capital x trabalho. Segundo a autora, a história dos estivadores é listada por perdas na estiva, já que poucos dos direitos do trabalhador foram recuperados depois de 1964. As reivindicações caíram no esquecimento após anos de conflitos e lutas. Com o tempo, os salários dos estivadores perderam

Edição e diagramação: Jéssica Santos PRIMEIRA IMPRESSÃO Março de 2014

A obra “Porto Vermelho” aborda o papel dos estivadores santistas no movimento sindical brasileiro

uma série de benefícios.“Sem direito às taxas adicionais sobre o trabalho, o salário do estivador já não lhe permitia o estatuto de “tubarão” da classe operária”, explica Ingrid. Embora o estudo de Ingrid não ultrapasse os anos iniciais da

ditadura, é de lembrar que, nos anos 70, surgiu um novo modelo sindicalista que retomou os grupos de fábrica e sugeriu um padrão de sindicato aberto, que apareceu com maior destaque na região do ABC paulista, defendendo uma nova

proposta sindical para o Brasil. Os sindicatos tiveram forte influência na luta pelos direitos dos trabalhadores por meio de manifestações, afrontando o regime militar e contribuindo significativamente para a derrubada do regime, que infelicitou o País por anos.

O último nomeado de Santos No poder entre 1980 e 1984, Paulo Barbosa foi o único prefeito santista que também foi presidente da câmara anos depois REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

Mara Menezes Paulo Gomes Barbosa foi o último prefeito nomeado pela ditadura militar em Santos. Atuou no período de 1980 a 1984. Conhecido também como prefeito biônico por ter sido “fabricado” pelo regime ditatorial, Barbosa se instalou na prefeitura de Santos, nomeado pelo governador do Estado, Paulo Maluf, de quem era amigo e por consequência era rotulado como malufista. Por essa vinculação política, também era muito criticado em Santos. Como representante do regime ditatorial, logo no primeiro ano de mandato o nome do prefeito já estava envolvido em um espalhafatoso acontecimento político na administração santista. Em 3 de setembro de 1980, o jornal Cidade de Santos expôs na capa a manchete Escândalo na Câmara que tratava da descoberta de um sistema de fiação clandestino instalado no Legislativo santista interligado com o gabinete do prefeito servindolhe para espionar o trabalho dos vereadores, inclusive nas sessões secretas. O vereador Carlos Mantovani Calejon, então no PMDB, fez a denúncia em plenário. Porém, antes que houvesse qualquer reação, o próprio presidente da Câmara na ocasião, Washington Di Giovanni, conhecido como Mimi, confessou que, ele mesmo, mandara instalar o sistema a pedido de Barbosa. Segundo suas explicações, o prefeito queria ouvir em seu gabinete “as baboseiras do PMDB”. O caso, que tornou-se conhecido como Mimigate, em alusão ao

Paulo Gomes Barbosa: sucedido pelo prefeito eleito Oswaldo Justo

Watergate americano, repercutiu na Assembleia Legislativa chegando até o Congresso Nacional. Entretanto, em dezembro daquele mesmo ano, já estava arquivado e esquecido. Na visão do jornalista e professor universitário Gerson Moreira Lima, Barbosa não foi prefeito, mas um

interventor imposto pela ditadura como todos os outros antes dele desde 1969 quando o regime militar declarou a cidade de Santos como área de interesse da Segurança Nacional. No que diz respeito ao trato com a imprensa, Moreira Lima diz que Barbosa não era dos mais

prepotentes e, provavelmente, visando uma boa relação com a mídia contratou como assessor de Comunicação, o jornalista Luiz Dias Guimarães, atual secretário de Turismo da administração do prefeito Paulo Alexandre, filho do ex-prefeito biônico. O mandato do último nomeado teve fim no dia 9 de julho de 1984, na cerimônia de posse do prefeito eleito Oswaldo Justo e do vice Esmeraldo Tarquínio, eleitos pelo povo após 15 anos de nomeações. Em seguida, o presidente da Câmara, Noé de Carvalho, declarou solenemente que a autonomia político-administrativa de Santos estava restaurada. Ao final da cerimônia de posse, Paulo Gomes Barbosa deixou a Prefeitura sob vaias e ofensas de uma multidão estimada em 3 mil pessoas e por por pouco não foi atingido por ovos e tomates, conforme reportava o jornal A Tribuna da época. Destaques pessoais Porém, a história demonstra a pessoa de Paulo Barbosa como um trabalhador desde muito cedo. Quando ainda criança, ficou órfão de pai, e com apenas nove anos de idade, decidiu trabalhar para ajudar no sustento da família. Foi engraxate, vendedor ambulante e lavador de carros até chegar à G. Lunardelli S/A Exportadora e Comércio de Café, como office-boy e ajudante de limpeza. Daí construiu uma carreira de sucesso chegando a assumir o cargo mais importante na empresa. Destacou-se como corretor de café e foi o primeiro brasileiro a vender o produto para o

Carvalhinho: estilo explosivo de governar

leste europeu, principalmente na exUnião Soviética. Foi graças à sua carreira profissional que recebeu o convite para ser prefeito nomeado de Santos, em 1980. Apesar de ter sido recebido com hostilidade por representar a figura opressiva do governo do golpe militar, anos mais tarde foi reconhecido como prefeito de valor e atuação em Santos. Durante seu mandato, promoveu realizações, como a urbanização da entrada da cidade, a construção de escolas, creches e postos de saúde, a obra do Mercado de Peixes da Ponta da Praia, e a iluminação e instalação de chuveirinhos na orla. Foi o prefeito que mais construiu moradias, com cerca de 12 mil unidades habitacionais pela Cohab Santista. Também implantou políticas que beneficiaram o funcionalismo municipal, como o Estatuto do Servidor Público, criando importantes direitos para a categoria. No seu mandato, Santos conquistou por duas vezes o título de Cidade mais Desenvolvida do País. Ao deixar a Prefeitura, voltou a se dedicar à atividade cafeeira, retornando em 1997 como vereador, função que ocupou por três legislaturas consecutivas. Foi presidente da Câmara, sendo o único a exercer os cargos mais importantes dos poderes Executivo e Legislativo de Santos. Barbosa faleceu aos 73 anos, no dia 19 de Março de 2011 em São Paulo devido a complicações de uma cirurgia cardíaca, e foi sepultado no Memorial Necrópole Ecumênica de Santos. FOTOS REPRODUÇÃO / RAFE AGUIAR

Lia Heck Antônio Manoel de Carvalho, nascido em Santos, em 31 de janeiro de 1935, foi nomeado prefeito municipal em 30/03/1974 pelo governador Laudo Natel. Carvalhinho, como era conhecido, foi advogado e ocupou vários cargos na vida pública e privada, dentre eles assessor do ministro do Trabalho, diretor da Faculdade de Administração de Empresas da Fundação Lusíada e de várias outras entidades, incluindo o Santos FC, Jabaquara AC., Clube da Bolsa de Santos, Jockey Club de São Paulo, Sociedade Protetora dos Animais e Sociedade de Melhoramentos da Ponta da Praia. Muitos diziam que o ex-prefeito de Santos tinha um “gênio difícil” e que, por isso, ganhou muitos inimigos. Ele chegou a ser acusado pelo então vereador Carlos Mantovani Callejon de provocar gastos excessivos com matérias pagas em jornais, utilizando indevidamente os cofres públicos. Uma delas foi uma publicação contra o veto de vereadores a um projeto que enviara à Câmara. O ex-prefeito chegou a admitir que tal matéria foi paga com dinheiro público. Não foi apenas desta vez que Carvalhinho foi acusado de utilizar o poder em benefício próprio. Foi acusado também de permitir que a empresa de um amigo funcionasse em terreno declarado de utilidade pública. Antônio Manoel de Carvalho deixou uma dívida de mais de 300 milhões de cruzeiros, moeda da época, para a Prefeitura de Santos. Segundo o secretário de Finanças

Carvalho foi exonerado por Maluf

do governo de Carvalhinho, o professor Altivo Ferreira, a dívida seria razoável e dentro da capacidade do município. Carvalho foi exonerado do cargo em 4/05/1979 pelo então governador Paulo Maluf, a quem já havia dirigido diversas críticas publicamente. Teve que esperar quatro dias para passar o cargo ao seu sucessor, o empresário Carlos Caldeira Filho. Em entrevista anos depois ao jornal A Tribuna, chegou a dizer que tinha um quadro em casa com o decreto assinado por Maluf. Sua atuação como empresário foi na presidência da Companhia de Habitação da Baixada Santista (Cohab) e na indústria de bebidas Antarctica. Foi também diretor-financeiro da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp). Foi ainda presidente da Associação Comercial de Santos e provedor da Santa Casa de Santos. Ele faleceu no dia 11 de julho de

Caldeira: gestão curta e polêmica

O empresário Carlos Caldeira Filho governou o município durante cerca de nove meses, entre1979 e 1980

Lucas MArtins Santos

Mesmo sem experiência política, Carlos Caldeira Filho foi prefeito de Santos de maio 1979 até janeiro 1980, com um mandato de cerca de oito meses. Foi indicado pelo governador, também nomeado, Paulo Salim Maluf. Foi dono do jornal Cidade de Santos, um dos mais combativos do município. Também foi sócio da Folha de S. Paulo, junto com Octavio Frias de Oliveira. O jornalista José Alberto Moraes Alves Blandy hoje advoga. Foi editor-chefe do Cidade de Santos em dois períodos, inclusive quando o veículo foi extinto, em 1986. Segundo ele, o jornal

tinha essa linha editorial “porque tentava manter as tradições da Cidade”. Uma tradição de luta, de combatividade. Matérias de críticas às administrações municipais eram frequentes nas páginas do jornal. No período em que Caldeira esteve no comando da Prefeitura, Blandy foi trabalhar em São Paulo. Durante o governo de Caldeira o jornalismo do Cidade de Santos se tornou menos combativo. Mesmo estando em São Paulo, o jornalista acompanhou as medidas e projetos adotados por Caldeira enquanto prefeito nomeado. Um dos mais polêmicos foi a extinção da frota de veículos usados por secretários municipais. “A Prefeitura tinha uma frota enorme

e ele a reduziu a cerca de 10%”. Naquele período, Caldeira tomou a decisão de leiloar a frota municipal em praça pública. Blandy acrescentou que o então prefeito pedia que os secretários utilizassem os seus próprios veículos. A respeito de Caldeira, o jornalista observou: “A personalidade dele era interessante”. Caldeira instituiu outras medidas de impacto como a distribuição de material escolar para os alunos da rede municipal por conta das empresas que possuía, sem qualquer ônus para o Município. A sua gestão também foi marcada por desentendimentos com a Câmara. Ele renunciou ao cargo no dia 28 de janeiro de 1980.

Edição e diagramação: Alexa Flambory PRIMEIRA IMPRESSÃO MARÇO de 2014

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FOTOS Reprodução/ Rafe Aguiar

Anos de chumbo O regime militar, dos generais Geisel e Médici (à esquerda), depois de derrubar o presidente João Goulart (acima) em 1964, gerou 21 anos de atraso para o País. A ditadura foi marcada por prisões, torturas e mortes de centenas de democratas, como o jornalista Vladimir Herzog (abaixo). Santos foi uma das cidades mais atingidas pela violência do regime, de que o navio-prisão Raul Soares é um símbolo sinistro.

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